domingo, 13 de novembro de 2016

A PESSOA NA SUA TOTALIDADE - TRICOTOMIA OU DICOTOMIA?


Vez por outra, entretanto, tem sido sugerido que o homem deveria ser entendido como consistindo de certas “partes” especificamente distintas. Um desses entendimentos é usualmente conhecido como tricotomia — a ideia que, segundo a Bíblia, o homem consiste de corpo, alma e espírito. Um dos proponentes mais antigos da tricotomia, como vimos, é Irineu, que ensinava que enquanto os incrédulos possuíam somente almas e corpos, os crentes adquiriam espíritos adicionais, que eram criados pelo Espírito Santo.[7] Um outro teólogo que usualmente está associado com a tricotomia é Apolinário de Laodicéa, que viveu de 310 a aproximadamente 390 AD. A maioria dos intérpretes atribuem a ele a ideia de que o homem consiste de corpo, alma e espírito ou mente (pneuma ou nous), e que o Logos ou a natureza divina de Cristo tomou o lugar do espírito humano na natureza humana que Cristo assumiu.[8] Berkouwer, contudo, assinala que Apolinário desenvolveu primeiro a sua cristologia errônea em um contexto de dicotomia.[9]  Mas J. N. D. Kelly diz que é uma questão de importância secundária se Apolinário era um dicotomista ou tricotomista.[10]

A tricotomia foi ensinada no século XIX por Franz Delitzsch,[11] J. B. Heard,[12] J. T. Beck,[13] e G. F. Oehler.[14] Mais recentemente tem sido defendido por escritores como Watchman Nee,[15] Charles R. Solomon (que afirma que através do seu corpo, o homem relaciona-se com o ambiente, através de sua alma com os outros, e do seu espírito com Deus),[16] e Bill Gothard.[17] É interessante observar que a tricotomia é também defendida na antiga e na nova Scofield Reference Bible.[18] A despeito deste apoio, devemos rejeitar a visão tricotomista da natureza humana.

Primeiro, ela deve ser rejeitada porque ela parece fazer violência à unidade do homem. A palavra em si mesma sugere que o homem pode ser separado em três “partes”: a palavra tricotomia é formada de duas palavras gregas, tricha, “tríplice” e temnein, “cortar. Alguns tricotomistas, incluindo Irineu, até sugeriram que certas pessoas tinham os seus espíritos cortados, enquanto que outras não.

Segundo, devemos rejeitá-la porque ela freqüentemente pressupõe uma antítese irreconciliável entre espírito e corpo. Realmente, a tricotomia originada na filosofia grega, particularmente na concepção de Platão, que possuía também um entendimento tríplice da natureza humana. Herman Bavinck levanta uma discussão útil deste assunto no seu livro Biblical Psychology. Ele assinala que em Platão e em outros filósofos gregos havia uma aguçada antítese entre as coisas visíveis e as invisíveis. O mundo como substância material não foi criado por Deus, diziam os gregos, mas sempre esteve contra ele. Um poder intermediário se fazia necessário para que pudesse haver ligação entre o mundo e Deus, e, assim, haver harmonia entre eles — este era o mundo da alma. A ideia do homem, encontrada no pensamento grego, pensa Bavinck, é semelhante: o homem é um ser racional que possui razão (nous), mas ele é também um ser material que tem um corpo. Entre esses dois deve haver uma terceira realidade que age como mediador: a alma, que é capaz de dirigir o corpo em nome da razão.[19]

A Bíblia, contudo, não ensina qualquer tipo de distinção aguda entre espírito (ou mente) e corpo. Segundo as Escrituras, a matéria não é má porque foi criada por Deus. A Bíblia nunca denigre o corpo humano como uma fonte necessária do mal, mas o descreve como um aspecto da boa criação de Deus, que deve ser usado no serviço de Deus. Para os gregos o corpo era considerado “uma sepultura para a alma” (soma sema) que o homem alegremente abandonava na morte, mas esta ideia é totalmente estranha às Escrituras.

Devemos rejeitar também a tricotomia porque ela faz uma aguda distinção entre o espírito e a alma que não encontra suporte algum nas Escrituras. Podemos ver isto mais claramente quando observamos que as palavras hebraica e grega traduzidas como alma e espírito são freqüentemente usadas indistintamente nas Escrituras.

1. O homem é descrito na Bíblia tanto como alguém que é corpo e alma como alguém que é corpo e espírito: “Não temais aqueles que matam o corpo mas não podem matar a alma” (Mt 10.28); “Também a mulher, tanto a viúva como a virgem, cuida das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor, assim no corpo como no espírito” (1 Co 7.34); “Como o corpo sem o espírito está morto, assim a fé sem as obras é morta” (Tg 2.25).

2. A dor é atribuída tanto à alma como ao espírito: “Levantou-se Ana e, com amargura de espírito, orou ao Senhor, e chorou abundantemente”  (1 Sm 1.10); “Porque o Senhor te chamou como a mulher desamparada e de espírito abatido; como a mulher da mocidade, que fora repudiada, diz o teu Deus” (Is 54.6); “Agora está angustiada a minha alma” (Jo 12.27); “Ditas estas cousas, angustiou-se Jesus em espírito” (Jo 13.21); “Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espírito se revoltava, em face da idolatria dominante na cidade” (At 17.16); “(Porque este justo [Ló], pelo que via e ouvia quando habitava entre eles, atormentava a sua alma justa, cada dia, por causa das obras iníquas daqueles)” (1 Pe 2.8).

3. O louvor e o amor a Deus são atribuídos tanto a alma como ao espírito: “A minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” (Lc 1.46-47); “Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força” (Mc 12.30).

4. A salvação é associada tanto à alma como ao espírito:  “Acolhei com mansidão a palavra implantada em vós, a qual é poderosa para salvar as vossas almas” (Tg 1.21); “...entregue a Satanás, para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo, no dia do Senhor” (1 Co 5.5).

5. O morrer é descritivo tanto como uma partida da alma como do espírito: “Ao sair-lhe a alma (porque morreu), deu-lhe o nome de Benoni” (Gn 35.18); “E estendendo-se três vezes sobre o menino, clamou ao Senhor, e disse: Ó Senhor meu Deus, que faças a alma deste menino tornar a entrar nele” (1 Rs 17.21); “Não temais os que matam o corpo e não podem matar alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10.28); “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Sl 31.5); “E Jesus clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito” (Mt 27.50); “Voltou-lhe o espírito, ela imediatamente se levantou”(Lc 8.55); “Então Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc 23.46); “E apedrejavam a Estevão que invocava e dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito!” (At 7.59).

6. Aqueles que já haviam morrido eram algumas vezes chamados tanto de almas e outras vezes de espíritos: Mt 10.28, citado acima; “Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam” (Ap 6.9); “e a Deus, o juíz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados “ (Hb 12.23); “Pois também Cristo morreu...para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado em espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais noutro tempo foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé” (1 Pe 3.18-20).

Os tricotomistas freqüentemente apelam para duas passagens do Novo Testamento: Hb 4.12 e 1 Ts 5.23, para dar suporte ao seu conceito, mas nenhuma dessas passagens prova o ponto deles.

Hebreus 4.12 diz o seguinte:
Porque a Palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração.
Estas palavras descrevem o poder penetrante da palavra de Deus. O autor de Hebreus não pretende dizer que a palavra de Deus causa uma divisão entre uma “parte” da natureza humana chamada alma e outra “parte” chamada espírito, assim como não pretende dizer que a palavra causa uma divisão entre as juntas do corpo e a medula encontrada nos ossos. A linguagem é figurativa. A cláusula seguinte aponta para o intento do autor: ele deseja dizer que a palavra de Deus discerne “os pensamentos e atitudes (ou intenções) do coração”. A palavra de Deus (seja ela entendida como a Escritura ou como Jesus Cristo) penetra nos recônditos mais interiores de nosso ser, trazendo à luz os motivos secretos de nossas ações. Esta passagem, na verdade, está em paralelo com um texto de Paulo: “[o Senhor] não somente trará à plena luz as cousas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações” (1 Co 4.5). Não há, portanto, nenhuma razão para se entender Hebreus 4.12 como ensinando uma distinção psicológica entre alma e espírito como sendo duas partes constituintes do homem.

A outra passagem é 1 Tessalonicenses 5.23, onde se lê:
O mesmo Deus da paz voz santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo, sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nossos Senhor Jesus Cristo.
Deveríamos observar primeiro que esta passagem não é uma afirmação doutrinária, mas uma oração. Paulo ora para que seus leitores tessalonicenses possam ser santificados e completamente preservados ou guardados por Deus até que Cristo volte novamente. A totalidade da santificação, pela qual Paulo ora, é expressa no texto por duas palavras gregas. A primeira, holoteleis, é derivada de holos, significando a totalidade, e telos, significando a finalidade ou o alvo; a palavra significa “a totalidade de modo que se alcance o alvo”. A Segunda palavra, holokleron, derivada de holos e kleros, porção ou parte, significa “completa em todas as suas partes”. É interessante observar que na segunda metade da passagem, ambos o adjetivos holokeron e o verbo teretheie (“possam ser guardados ou preservados”) estão no singular, indicando que a ênfase do texto está sobre a totalidade da pessoa. Quando Paulo ora pelos tessalonicenses para que o espírito, alma e corpo possam ser guardados, ele não está tentando separar o homem em três partes, mais do que Jesus pretendeu fazer em quatro partes quando disse: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força (Lc 10.27). Esta passagem, portanto, também não proporciona qualquer base para a visão tricotômica da constituição do homem.[20]

A outra ideia usualmente sustentada a respeito da constituição do homem é a chamada dicotomia — a ideia de que o homem consiste de corpo e alma. Esta visão tem sido mais largamente sustentada do que a tricotomia. Nossa rejeição de tricotomia significa que devemos optar pela dicotomia? Um número de teólogos afirma esta crença. Louis Berkhof, por exemplo, crê que “a representação dominante da natureza do homem na Escritura é claramente dicotômica”.[21]

É minha convicção, contudo, que nós deveríamos rejeitar tanto a dicotomia como a tricotomia. Como cristãos deveríamos certamente repudiar a dicotomia no sentido em que os antigos gregos a ensinaram. Platão, por exemplo, formulou a ideia de que o corpo e a alma devem ser tidos como duas substâncias distintas: a alma pensante, que é divina, e o corpo. Visto que o corpo é composto de substância inferior chamada matéria, ele é de um valor inferior à da alma. Na morte simplesmente o corpo se desintegra, mas a alma racional (ou nous) retorna “aos céus”, se o seu curso de ação foi justo e honrado, e continua a existir para sempre. A alma é considerada uma substância superior, inerentemente indestrutível, enquanto que o corpo é inferior à alma, mortal, e condenado à destruição total. Não há no pensamento grego, portanto, lugar algum para a ressurreição do corpo.[22]

Mas mesmo à parte do entendimento grego da dicotomia, que é claramente contrário à Escritura, devemos rejeitar o termo dicotomia como tal, visto que ele não é uma descrição exata da visão bíblica do homem. A palavra em si mesma é objetável. Ela vem de duas raízes gregas: diche, significando “dupla” ou “em duas”; e temnein, significando “cortar”. Ela, portanto, sugere que a pessoa humana pode ser cortada em duas “partes”. Mas o homem nesta presente vida não pode ser separado dessa maneira. Como veremos, a Bíblia descreve a pessoa humana como uma totalidade, um todo, um ser unitário.

O melhor modo de determinar a visão bíblica do homem como uma pessoa total é examinar os termos usados para descrever os vários aspectos do homem. Antes de fazer isso, contudo, duas observações devem ser feitas: (1) Como foi dito, a preocupação primária da Bíblia não é a constituição psicológica ou antropológica do homem mas a sua capacidade inescapável de relacionar-se com Deus; e (2) devemos sempre Ter em mente que J. A. T. Robinson diz a respeito do uso que o Antigo Testamento faz destes termos: “Qualquer parte pode ser tomada pelo todo”,[23] e o que G. E. Ladd afirma a respeito do uso que o Novo Testamento faz dessas palavras: “A recente erudição tem reconhecido que termos como corpo, alma e espírito não são diferentes, faculdades separadas do homem mas diferentes modos de ver a totalidade do homem.”[24]

Com isto em mente, nós trataremos primeiro das palavras do Antigo Testamento e, então com as encontradas no Novo Testamento.


Notas:

[7] Ver acima, p. 34-35 (texto em inglês).
[8] Ver Louis Berkhof, History of Christian Doctrines (Grand Rapids: Eerdmans, 1937), p. 106-107; J. L. Neve, A History of Christian Thought (Philadelphia: United Lutheran Publication House, 1943), p. 126; Anderson, On Being Human, p. 207-8.
[9] Man, p. 209. Ver também o comentário de A. Grillmeier citado em n.20. Dichotomy é a idéia de que o homem deve ser entendido como consistindo de duas “partes”, corpo e alma.
[10] J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines (London: Black, 1958), p. 292.
[11] System of Biblical Psychology, pp. Vii, 247-66.
[12] The Tripartite Nature of Man (Edinburgh: T & T Clark, 1866).
[13] Outlines of Biblical Psychology, (Edinburgh: T & T Clark, 1877), p. 38.
[14] Theology of the Old Testament, edit. G. E. Day (1873; Grand Rapids: Zondervan), 149-51.
[15] The Release of the Spirit (Indianapolis: Sure Foundation, 1956), 6.
[16] The Handbook of Happiness (Denver: Heritage House Publications, 1971), 28; ver também p. 27-58.
[17] Wilfred Brockelman, Gothard, The Man and his Ministry: An Evaluation (Santa Barbara: Quill Publications, 1976), 85-96.
[18] The Scofield Reference Bible (New York: Oxford University Press, 1909), no texto de 1 Ts 5.23; The New Scofield Reference Bible (New York: Oxford University Press, 1967) no texto de 1 Ts 5.23.
[19] Bijbelsche en Religieuze Psychologie, 53. Cf. TDNT, 6:395.
[20] Sobre a interpretação de Hb 4.12 e 1 Ts 5.23, ver Bavinck, Bijbelsche Psychologie, 58-59; Louis Berkhof, Teologia Sistemática (Campinas: Luz Para o Caminho, 199....), p.......; Berkouwer, Man, 210; Sobre Hb 4.12 ver também F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews, in the New International Commentary sobre a série do Novo Testamento (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), 80-83; Para uma defesa do pensamento tricotômico, ver F. Delitzsch, The Epistle to the Hebrews, (Edinburgh: T. & T. Clark, 202-14, especialmente 212-14.
[21] Teologia Sistemática, p..........; cf ª H. Strong, Systematic Theology, vol. 2 (Philadelphia: Griffith and Rowland, 1907), 483-88; J. T. Mueller, Christian Dogmatics, (St. Louis: Concordia, 1934), 184; H. C. thiessen, Introductory Lectures in Systematic Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1949), 225-26; Gordon H. Clark, The Biblical Doctrine of Man (Jefferson, MD: The Trinity Foundation, 1984), 33-45.
[22] Cf o meu livro A Bíblia e o Futuro, (pp 86-87 edição em inglês). Sobre este ponto ver também Berkouwer, Man, 212-22.
[23] The Body, 16.
[24] G. E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), 457.


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HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. Tradução de Heber Carlos Campos. 2ª Ed. Cultura Cristã: São Paulo, 2010. p. 226-231.



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