terça-feira, 15 de novembro de 2016

A PESSOA NA SUA TOTALIDADE - O ESTADO INTERMEDIÁRIO


Agora, enfrentaremos uma pergunta importante: O que dizer a respeito do período entre a morte e a ressurreição, o chamado “estado intermediário”? Quando uma pessoa morre, o que acontece? Visto que alguém não é completo sem o corpo, então uma pessoa cessa de existir até ao tempo da ressurreição? Ou ela “existe” num estado completamente inconsciente? Ou imediatamente após a morte recebe a ressurreição do corpo? Ou ela recebe uma espécie de corpo intermediário, para ser substituído mais tarde por um corpo ressuscitado?

A ideia de que o homem cessa de existir entre a morte e a ressurreição, sustentada pelas Testemunhas de Jeová e pelos Adventistas do Sétimo Dia, deve ser rejeitada como não-bíblicas. [63] A ideia de que após a morte as pessoas recebem imediatamente corpos “intermediários” também não encontra base nas Escrituras. O contraste no Novo Testamento é sempre entre o corpo presente e o corpo ressuscitado (cf. Fp 3.21; 1 Co 15.42-44). Os aderentes dessa ideia, às vezes, citam 2 Coríntios 5.1 para provar que receberemos tais corpos “intermediários”: “Sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos céus.” Mas esta passagem fala a respeito da casa eterna no céu. Se tivéssemos que entender esta “casa eterna” como se referindo a um novo corpo, ela não designaria um corpo “intermediário”, temporário. [64]

Uma outra ideia, usualmente chamada de “sono da alma”, é a de que o homem, ou sua “alma” , existe num estado inconsciente entre a morte e a ressurreição. Esta ideia tem sido sustentada por vários grupos cristãos. João Calvino escreveu sua primeira obra teológica, Psychopannychia, para combater os ensinos do sono-da-alma sustentados pelos anabatistas da sua época. [65] Mais recentemente, esta posição tem sido defendida por G. Vander Leeuw, [66] Paul Althaus [67] e Oscar Cullmann. [68]

Herman Dooyeweerd, rejeitando a dicotomia alma-corpo, afirma um novo entendimento dos dois aspectos do homem: coração e “função de capa” (functie-mantel), sendo este último termo relativo ao corpo, que é a totalidade de sua existência temporal e a estrutura inteira de todas as suas funções temporais. [69] O coração e a função-de-capa não devem ser entendidos como duas substâncias distintas dentro do ser humano, mas ao contrário, como descrevendo o homem em sua totalidade unitária.

Mas isto não responde à nossa pergunta sobre o que acontece ao ser humano entre a morte e a ressurreição. Quando a Dooyeweerd foi perguntado: Que espécie de funções podem ainda ser deixadas para a “alma” (anima rationalis separata, alma racional separada) quando ela separada de sua conjunção temporal com as funções pre-psíquicas [70] (i.e., pós a morte), sua resposta foi: “Nada” (niets). [71] Em sua resposta, contudo, Dooyeweerd não nega a existência continuada da alma após a morte, nem ele apresenta o estado da alma desincorporada como sendo de inconsciência. Todavia, por privar a alma de suas funções temporais, ele parece deixar somente o mais indefinido dos aspectos no lugar das almas racionais desincorporadas. [72]

No mesmo raciocínio, Berkouwer afirma que nós não deveríamos concluir da “negativa” de Dooyeweerd de que ele rejeita a ideia da comunhão com Cristo após a morte. [73]

Quando Dooyeweerd pronunciou o seu “nada!”, ele estava respondendo a uma questão a respeito de uma ideia do homem que ele próprio não subscrevia: a  de que o homem possuía duas “partes” separadas, um corpo mortal inferior e uma “alma racional” superior, indestrutível e imortal — o ensino dos filósofos gregos antigos. Assim, nós não seríamos justos com Dooyeweerd se aplicássemos suas palavras ao seu próprio entendimento do estado intermediário. Não obstante, devemos admitir que a afirmação é enigmática. Ela tem conduzido muitas a levantar questões a respeito da posição de Dooyeweerd a respeito do estado dos crentes entre a morte e a ressurreição. [74]

O ensino central da Bíblia a respeito do futuro do homem é o da ressurreição do corpo. Mas o Novo Testamento indica que o estado dos crentes entre a morte e a ressurreição é o de alegria provisória, expressa no dito de Paulo de ser “incomparavelmente melhor” do que o estado aqui na terra (Fp 1.23). Se isto é assim, a condição dos crentes durante o estado intermediário não pode ser um estado de não-existência ou de inconsciência.

Algumas vezes o Novo Testamento simplesmente diz que o crente continuará a existir neste estado de alegria provisória:
Entretanto, se o viver na carne traz fruto para o meu trabalho, já não sei o que hei de escolher. Ora, de um e de outro lado estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor. (Fp 1.22-23)
Jesus, respondendo ao pecador penitente, disse: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. (Lc 23.43)
Temos, portanto, sempre ânimo, sabendo que, enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor; visto que andamos por fé, e não pelo que vemos. Entretanto estamos em plena confiança, preferindo deixar o corpo e habitar com o Senhor. (2 Co 5.6-8)
Na passagem aos Filipenses Paulo contrasta “o viver na carne” com “partir e estar com Cristo”, sugerindo claramente que é possível para uma pessoa não mais estar vivendo no presente corpo e, todavia, estar com Cristo — um estado que é muito melhor que o presente estado. Particularmente significativo neste ponto é a passagem de 2 Coríntios, onde Paulo contrasta o “enquanto no corpo” (endemountes en to somati) com o estar “ausente do corpo” (ekdemesai ek tou somatos). Se Paulo tivesse pretendido descrever a bênção do crente após a ressurreição, ele poderia Ter usado uma expressão como “ausentes deste corpo”, sugerindo que os crentes então estariam “habitando” um novo corpo. Mas ele simplesmente “ausentes do corpo”, dizendo aos seus leitores que ele está pensando de uma existência entre o corpo presente e o corpo da ressurreição. Observe que, em ambas as passagens, Paulo afirma que é possível para os crentes estarem com Cristo, mesmo quando eles não mais vivem em seus presentes corpos e antes deles receberem seus corpos ressuscitados.

Em outras vezes, contudo, o Novo Testamento usa as palavras “alma” (psyche) ou “espírito” (pneuma) para se referir aos crentes enquanto eles continuam a existir entre a morte e a ressurreição. A palavra “alma” é usada nas seguintes passagens:
Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma” (Mt 10.28).
Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam (Ap 6.9).
A palavra “espírito é usada nos seguintes textos:
Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus  vivo, a Jerusalém celestial, e a incontáveis hostes de anjos, e à universal assembléia e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados. (Hb 12.22-23)
Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais noutro tempo foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água. (1 Pe 3.18-20)

Assim, às vezes, o Novo Testamento diz que nós que somos crentes, continuaremos a existir num estado provisório de alegria entre a morte e a ressurreição, enquanto que em outras vezes ele diz que as “almas” ou “espíritos” dos crentes ainda existirão durante aquele estado. Mas a Bíblia não usa palavras como “alma” e “espírito” no mesmo modo que nós o fazemos; dessa forma, estas passagens estão pretendendo tão somente nos dizer que os seres humanos continuarão a existir entre a morte e a ressurreição, enquanto esperam a ressurreição do corpo. A Bíblia não nos dá qualquer descrição antropológica da vida nesse estado intermediário. Podemos especular a respeito dela, podemos tentar imaginar a que esse estado será, mas não podemos formar nenhuma ideia clara da vida entre a morte e a ressurreição. A Bíblia ensina sobre ela, mas não a descreve. Como Berkouwer diz, o que o Novo Testamento nos conta a respeito do estado intermediário não é nada mais do que um sussurro. [75]

Embora o homem exista agora no estado de unidade psico-somática, esta unidade poderá ser temporariamente rompida no tempo da morte. Em 2 Coríntios 5.8 Paulo ensina claramente que os seres humanos podem existir à parte de seus corpos presentes. O mesmo ponto é assinalado em duas outras passagens do Novo Testamento:
A fim de que sejam os vossos corações confirmados em santidade, isentos de culpa, na presença de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, com todos os seus santos. (1 Ts 3.13)
Pois se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará juntamente em sua companhia os que dormem. (1 Ts 4.14)
Ambos os textos falam a respeito dos “santos” e “daqueles que dormem com Cristo”, como existindo após a morte e antes da ressurreição — observe que a ressurreição daqueles que dormiram em Cristo é mencionada mais tarde em 1 Tessalonicenses 4.16. [76] Pode ser observado também que neste verso a expressão “mortos em Cristo” claramente sugere que os crentes falecidos ainda estão em algum estado de existência antes da ressurreição.

O estado normal do homem é o da unidade psico-somática. No tempo da ressurreição ele será restaurado plenamente ao da unidade e, assim, uma vez mais, será tornado completo. Mas nós devemos reconhecer que, segundo o ensino bíblico, os crentes podem existir temporariamente num estado de alegria provisória, mesmo fora de seus corpos presentes durante o “tempo” entre a morte e a ressurreição. Este estado intermediário e, contudo, incompleto e provisório. Nós anelamos para a ressurreição do corpo e a nova terra como o clímax final do programa redentor de Deus.


Notas:

[63] Ver meu trabalho The Four Major Cults (Grand Rapids: Eerdmans, 1963), 345-71.
[64] Para uma interpretação diferente da “casa eterna no céu”, ver A Bíblia e o Futuro, pp. 104-6 (em inglês).
[65] Ver Calvino, Tracts and Treatises of the Reformed Faith, ,vol. 3, (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), 413-90.
[66] Onsterfelijkheid of Opstanding, (Assen: Van Gorcum, 1936).
[67] Die Letzten Dinge, (1922: Gütersloh: bertelsmann, 1957).
[68] Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? (New York: Macmillan, 1964), 10-11.
[69] William G. Young, “The Nature of Man in the Amsterdam Philosophy”, Westminster Theological Journal 22, no. 1 (Novembro, 1959):7.
[70] A saber, as funções aritméticas, especiais, físicas e orgânicas.
[71] Herman Dooyeweerd, “Kuyper’s Wetenschapsleer”, Philosophia Reformata 4 (1939): 204.
[72] Young, “The Nature of Man”, 10.
[73] Man, 256.


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HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. Tradução de Heber Carlos Campos. 2ª Ed. Cultura Cristã: São Paulo, 2010. p. 240-244.



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