segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A PESSOA NA SUA TOTALIDADE - AS PALAVRAS DO ANTIGO TESTAMENTO


Começamos com a palavra hebraica nephesh, mais comumente traduzida como “alma”. O léxico Hebraico de Brown, Driver e Briggs [25] dá dez significados para essa palavra, da qual os mais importantes para o nosso propósito são: “o ser mais interior do homem”, “o ser vivo” (usado a respeito de homens e animais),[26] “o homem em si mesmo” (freqüentemente usado como um pronome pessoal: eu mesmo, ele mesmo, etc.; neste sentido pode significar o homem como um todo), “o lugar dos apetites”, “o assento das emoções”. A palavra pode, algumas vezes, se referir a uma pessoa falecida, com ou sem meth (“morta”). É algumas vezes dito que a nephesh morre.

Está claro, portanto, que a palavra nephesh pode significar a pessoa total. Edmond Jacob diz o seguinte: “Nephesh é o termo usual para a natureza total do homem, para o que ele é e não apenas pelo que tem... Por isso a melhor tradução em muitos casos é ‘pessoa’”. [27]

A palavra hebraica seguinte é ruach, usualmente traduzida como “espírito”. O significado da raiz desta palavra é “ar em movimento”; ela é freqüentemente usada para descrever o vento. Brown-Driver-Briggs listam nove significados, incluindo os seguintes: “espírito”, “animação”, “disposição”, “espírito de vida e ser que respira morando na carne de homens e animais” (somente um exemplo deste último: Ec 3.21), “assento das emoções”, “órgão de atos mentais”, “órgão da vontade”. Ruach, portanto, sobrepõe-se em significado a nephesh. W. D. Stacey diz:

Quando a referência é feita ao homem em sua relação com Deus, ruach é o termo mais provável para ser usado..., mas quando referência é feita ao homem em relação a outros homens, ou o homem vivendo a vida comum dos homens, então nephesh é mais provável, se um termo psíquico é exigido. Em ambos os casos a totalidade do homem está envolvida. [28]

Portanto, não deve ser pensado de ruach como um aspecto separado do homem, mas como a pessoa total vista de determinada perspectiva.

Olhamos a seguir para as palavras do Antigo Testamento usualmente traduzidas como “coração”: lebh e lebhabh. Brown-Driver-Briggs dá dez significados para estas duas palavras, incluindo os seguintes: “o homem mais interior ou alma”, “mente”, “resoluções da vontade”, “consciência”, “caráter moral”, “o homem em si mesmo”, “o lugar dos apetites”, “o assento das emoções”, “o assento da coragem”. F. H. Von Meyenfeldt, em seu estudo final da palavra, conclui que lebh ou lebhabh usualmente representa a pessoa total e tem uma significação predominantemente religiosa. [29]

A palavra coração não somente é usada no Antigo Testamento para descrever o assento do pensamento, do sentimento e da vontade; é também a sede do pecado (Gn 6.5; Sl 95.8, 10; Jr 17.9), a sede da renovação espiritual (Dt 30.6; Sl 51.10; Jr 31.33; Ez 36.26), e o lugar da fé (Sl 28.7; 112.7; Pv 3.5).

Mais do que qualquer outro termo do Antigo Testamento, a palavra coração significa o homem no mais profundo centro de sua existência, e como ele é no mais profundo do seu ser. Herman Dooyeweerd, o filósofo holandês, entendeu o coração na Escritura como sendo “a raiz religiosa da existência total do homem”.[30] A filosofia que ele desenvolveu enfatiza que o coração é o centro e a fonte de toda a atividade religiosa, filosófica e moral do homem. Ray Anderson chama o coração de “o centro do eu subjetivo”. Ele é “a unidade do corpo e da alma na verdadeira ordem deles — ele é a pessoa”.[31]

Todos esses três termos examinados do Antigo Testamento, portanto, descrevem o homem em sua unidade e totalidade, embora olhando-o de aspectos ligeiramente diferentes. H. Wheeler Robinson comenta: “Não é possível fazer uma diferenciação exata das províncias cobertas pelo ‘coração’, nephesh e ruach, pela simples razão de que tal diferenciação exata nunca foi feita.”[32]

A próxima palavra é basar, usualmente traduzida como “carne”. Brown-Driver-Briggs lista seis significados, incluindo os seguintes: “carne” (para o corpo), “parentesco de sangue”, “homem contra Deus como fraco e errante”, “raça humana”. N. P. Bratsiotis diz que basar é mais freqüentemente usado no Antigo Testamento para “o aspecto externo e carnal da natureza humana”.[33] Ele continua a dizer que quando basar é distinto do aspecto externo do homem e nephesh é entendido como sendo o aspecto interno, mesmo assim nunca devemos pensar destas palavras como descrevendo um dualismo de alma e corpo no sentido platônico.

Ao contrário, basar e nephesh devem ser entendidos como aspectos diferentes da existência do homem como uma entidade dual. É precisamente esta totalidade antropológica enfática que é determinante para a natureza dual do ser humano. Ela exclui qualquer noção de uma dicotomia entre basar e nephesh... como irreconciliavelmente opostos uma a outra, e revela o relacionamento psico-somático mútuo entre elas.[34]

A palavra basar é freqüentemente usada para descrever o homem em sua fraqueza. H. W. Wolff observa que freqüentemente basar descreve a vida humana como débil e fraca, dando como exemplo deste uso Jeremias 17.5 – “Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço”.[35]

Basar pode algumas vezes denotar a pessoa total, não apenas o aspecto físico.[36] Mas ela pode também ser juntada com nephesh em maneiras que referem ao homem total. Clarence B. Bass, comentando as palavras do Antigo Testamento para “corpo”, afirma:
Corpo e alma são usados quase que indistintamente, sendo que a alma indica o homem como um ser vivo, e corpo (carne) denota-o como uma criatura corporalmente visível... Esta unidade de corpo e alma [tem] conduzido alguns escritores a concluir que o Antigo Testamento carece de uma ideia do corpo físico como uma entidade discreta... Mais propriamente, contudo, o Antigo Testamento vê o corpo e a alma como coordenadas que se interpenetram em funções para formar um todo simples.[37]
Basar, portanto, também é freqüentemente usado no Antigo Testamento para denotar a pessoa total, embora com ênfase no lado exterior.

Assim, o mundo do pensamento do Antigo Testamento exclui totalmente qualquer espécie de dicotomia ou dualismo que pinte o homem como feito de duas substâncias distintas. Como H. Wheeler Robinson diz, “a ênfase final deve cair sobre o fato de que os quatro termos [nephesh, ruach, lebh e basar]...simplesmente apresentam aspectos diferentes da unidade da personalidade.”[38]


Notas:

[25] Francis Brown, S. R. Driver, e Charle Briggs, Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (New York: Houghton Mifflin, 1907).
[26] Provavelmente o exemplo mais conhecido do uso dessa palavra se referindo ao homem seja Gn 2.7 – “Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a  ser alma vivente (nephesh chayyah)”.
[27] “Psyche”, TDNT, 9:620.
[28] The Pauline View of Man (London: Macmillan, 1956), 90.
[29] F. H. Von Meyenfeldt, Het Hart (Leb, Lebab) in het Oude Testament (Leiden: E. J. Brill, 1950), 218-19.
[30] Wijsbegeerte der Wetsidee, vol. 1 (Amsterdam: H. J. Paris, 1935), 30.
[31] On Being Human, 211.
[32] The Christian Doctrine of Man (Edinburgh: T. & T. Clark, 1911), 26.
[33] “Basar”, na obra de G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren, editores, Theological Dictionary of the Old Testament, (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), p. 325.
[34] Ibid., 325.
[35] Anthropologie des Alten Testaments (Munich: Chr. Kaiser, 1973), 55.
[36] F. B. Knutson, “Flesh”, ISBE, 2.314.
[37] “Corpo”, ibid., 1:528-29. Observe também o comentário de J. Pedersen: “Alma e corpo [no uso do Antigo Testamento] são tão intimamente unidos que uma distinção não pode ser feita entre eles. Eles são mais do que ‘unidos’; o corpo é a alma em sua forma exterior” (Israel: Its Life and Culture, vol. 1 [London: Oxford University Press, 1926], 171).
[38] The Christian Doctrine of Man, 27.


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HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. Tradução de Heber Carlos Campos. 2ª Ed. Cultura Cristã: São Paulo, 2010. p. 232-234.



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