sábado, 29 de outubro de 2016

FORMA DA POESIA HEBRAICA

É fundamental compreender como a poesia hebraica funciona. Com razão se diz que nenhuma outra parte das Escrituras é mais lida do que os Salmos. Nas versões de bolso do NT, costuma-se com frequência acrescentar esse livro, e na maioria dos cultos de adoração eles ainda são cantados ou recitados regularmente. A quantidade de citações do saltério no NT demonstra a sua importância na vida da igreja primitiva. A pesar disso, os salmos não são facilmente compreendidos. Os paralelismos e os padrões métricos são muitas vezes difíceis de destrinchar, e o leitor desatento pode ler muito mais coisas nas declarações paralelas do que o contexto de fato permitiria. E, ainda por cima, muitos deles (como os salmos de lamento ou imprecatórios) parecem ser à primeira vista impróprios. Mesmo assim, os estudiosos e os pastores superinterpretam as imagens ou metáforas da poesia hebraica, dando-lhe um peso teológico maior do que o devido. É necessário compreender um pouco sobre a forma e a função dos padrões poéticos semitas a fim de obtermos sua coerência.

1. Padrões de métrica

A poesia pode ser identificada tanto pela métrica ou ritmo, quanto pelo paralelismo gramatical e linguístico. O primeiro aspecto é útil principalmente aos especialistas, mas de pouca valia aos pastores, por isso não vamos nos deter demasiado nele. Mesmo assim um conhecimento básico de métrica é importante para permitir ao leitor um pouco mais de habilidade com a poesia hebraica. Ainda não se desvendou o segredo do ritmo semita. Como Freedman observa, cada poema parece produzir diferentes marcações (1977:90-112). Os estudiosos se dividem em classificar as estruturas através da contagem das tônicas ou das sílabas. A concretização de ambos os casos depende do conhecimento de hebraico e de fonética. As unidades acentuadas dizem respeito ao lado oral da poesia e dividem um verso com base nas sílabas que o leitor hebreu enfatizava ao recitar um versículo. Por exemplo, Salmos 103.10 se divide ao longo das seguintes tônicas:
Não segundo / os nossos pecados / nos trata
Nem segundo / as nossas iniquidades / nos retribui
[a partir da tradução do autor em inglês]
As sílabas são as unidades básicas da fala e muitos, como Freedman, acreditam que elas oferecem uma base mais precisa e identificável para estruturar um poema. Por exemplo, Salmos 113 tem versos de quatorze sílabas divididos em 7.7 e, às vezes, em 8.6.

Mas nem todos os poemas são fáceis de se analisar com base em um ou outro esquema. Há de fato muita variação, e cada poema nas Escrituras deve ser estudado em seus próprios termos. O máximo que podemos dizer é que o ritmo é uma das principais marcas de identificação da poesia hebraica. Usando a versificação por tônicas, os estudiosos dividem os salmos em 2.2, 3.2, 2.3 e muitos outros padrões. A divisão silábica produz um grande número de padrões, com versos de dez, doze ou quatorze sílabas. Além disso, as estrofes ou os versículos são compostos de dois (como SI 103.10) a cinco versos de ideias paralelas. Dentro deles pode haver uma miríade de formas, à medida que o padrão métrico e o paralelismo se entrelaçam. Na verdade, muitos estudiosos acreditam que os dois sistemas podem representar fases do desenvolvimento da poesia hebraica. Embora isso permaneça especulativo e inverificável, resta o fato de que a escolha que o poeta fazia dos vocábulos dependia de certo modo de considerações métricas. Ao mesmo tempo, o som (o que inclui não só a métrica, mas a leitura oral, as aliterações, as onomatopéias etc.) foi muitas vezes determinante na escolha e no agrupamento das palavras nas estrofes do poema (Gerstenberger 1985:413-416).

Em resumo, o desafio do intérprete é não atribuir mais significado aos termos individuais do que ao salmo como um todo. Os estudos sobre as palavras não são tão determinantes em Salmos como os são nas epístolas do NT, e o significado é derivado mais do todo do que das partes. Por todas essas razões, precisamos focalizar nossa atenção mais no paralelismo do que na métrica.

2. Paralelismo

Em 1750, o bispo Robert Lowth desenvolveu a proposta, geralmente aceita hoje em dia, dos três tipos básicos de paralelismo: sinonímico, sintético e antitético. Alguns ainda a seguem (como Gerstenberger, Murphy, Gray). Porém, um número cada vez maior de estudiosos (como Kugel, Alter, Longman) tem contestado essa teoria, argumentando que ela virtualmente reduz a poesia à prosa, “achatando o verso poético” (Longman). Eles afirmam que o segundo verso sempre acrescenta um significado, de alguma maneira esclarecendo o primeiro. Essa abordagem não apenas vem ganhando terreno nos últimos tempos, mas também tem se tornado certo consenso entre os atuais estudiosos (ver a pesquisa em Howard 1999:344-350). De fato, poderíamos dizer que tal abordagem tem conseguido “uma vitória arrasadora” . Como em muitas outras áreas, não existem apenas dois tipos: o sinonímico (em que os termos significam a mesma ideia) e o sintético (em que o segundo acrescenta uma ideia nova), mas muitas gradações entre ambos. Algumas passagens exibem significados bastante semelhantes, mas, em outras, o segundo verso apresenta uma nuance quase imperceptível e, em outras, ainda uma grande parcela de significado é acrescentada ao primeiro. Os diversos estudos que apontam para pares de palavras (um repertório fixo de sinônimos que era regularmente usado) contrariam em parte a visão de que o paralelismo sempre se dá entre os versos (para uma boa pesquisa, cf. LaSor, Hubbard, Bush 1982:314-315). Pares como terra/pó, inimigo/adversário, Jacó/Israel, voz/discurso, povo/nação e combinações semelhantes apontam por vezes para um paralelismo sinonímico. No entanto, mesmo aqui algum significado é acrescentado, à medida que o paralelismo e os pares de palavras adicionam ênfase à ideia. O contexto, como sempre, deve decidir cada caso.

1. O paralelismo sinonímico acontece quando o segundo verso repete o primeiro com acréscimo de pouco ou nenhum significado. Muitas vezes isso inclui paralelos gramaticais, quando o segundo verso se equipara gramaticalmente ao primeiro (como uma frase preposicional, sujeito, verbo, objeto) e, assim, também se equipara em significado. Em alguns casos, o estudioso não deveria interpretar demais a variação semântica entre dois versos, pois isso poderia sugerir mais uma mudança de estilo cuja finalidade é causar efeito. Por outro lado, com frequência alguma coisa é acrescentada. o que levou Robert Alter, Adele Berlin e outros a desafiar a abordagem tradicional. Por exemplo, muitos indicam Salmos 2.2-4 como um exemplo de sinonímia. Vamos considerar um par de cada vez. Salmos 2.2:
Os reis da terra se levantam,
e os príncipes conspiram unidos.
Embora os sujeitos (reis da terra/príncipes) possam ser sinônimos, existe um desenvolvimento entre “se levantam” e “conspiram”, pois o segundo implica o acordo que se segue ao ato de “se levantar”. O mesmo é válido para o versículo 3:
“Rompamos suas correntes", eles dizem,
“e livremo-nos de suas algemas”.
Certamente correntes e algemas significam a mesma coisa, mas existe uma progressão entre “rom per” e “livrar”. E improvável que essas sejam diferenças apenas estilísticas. Por outro lado, consideremos Isaías 53.5: 
Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões
e esmagado por causa das nossas maldades;
o castigo que nos traz a paz estava sobre ele,
e por suas feridas fomos sarados.
Os primeiros dois versos muito provavelmente exibem algum tipo de paralelismo sinonímico, pois o paralelo entre as palavras ferido/esmagado e transgressões/maldades não mostra uma variação importante de significado. Os defensores da abordagem sintética argumentam que o segundo verso reforça o primeiro e, desse modo, ele não seria puramente sinonímico. Mesmo assim, como não é acrescentada nenhuma nova ideia, os versos poderiam ser classificados como “paralelismo sinonímico”. Os dois últimos versos são com clareza sintéticos. O verso três fala dos meios e o verso quatro, do resultado. Mais difícil é verificar a ideia paralela em Salmos 103.3:
Ele é quem perdoa todas as tuas iniquidades;
quem sara todas as tuas enfermidades.
Alguns interpretam o segundo verso como cura física. Certamente a Bíblia apresenta uma relação entre a cura espiritual e a física: as duas, não raro, são combinadas nos milagres de cura operados por Jesus (como Lc 5.20). No entanto, devemos ter cuidado para não superinterpretar o paralelismo poético nesse sentido. Embora isso seja algo possível, em Salmos 103 é discutível. Os dois pares de palavras — perdoa/sara e iniquidades/enfermidades — são muitas vezes sinônimos nas Escrituras. Contudo, nesse contexto, eu argumentaria que não devem os acrescentar a cura física à espiritual. O paralelismo pode ser muito forte, se o verbo, por conseguinte, se referir à cura espiritual. Apesar disso, a última tendência é considerar o segundo verso como uma referência à cura física. Para concluir, os estudiosos estão certos de que não existe um paralelismo sinonímico verdadeiro conforme antes se pensava, há alguns exemplos (e eles são raros) quando o segundo verso repete o significado do primeiro, e o único dado acrescentado é a ênfase.

2. O paralelismo progressivo também é chamado “paralelismo sintético” e se refere a um desenvolvimento do pensamento no qual o segundo verso acrescenta ideias ao primeiro. Alguns têm duvidado da validade dessa categoria porque o sentido adicional destrói o paralelismo. Porém, trata-se da forma dominante que deve ser aceita, pois ela tem sido virtualmente a definição do paralelismo hebraico. Um famoso exemplo é Salmos 1.3:
Ele será como árvore plantada junto às correntes de águas,
que dá o seu fruto no tempo certo
e cuja folhagem não murcha.
Tudo que ele fazer prosperará.
Há três “passos” aqui: plantar (v. 1) para dar fruto (v. 2), para não murchar (v. 3), para uma colheita bem-sucedida (v. 4, que abandona a metáfora). Muitas vezes o desenvolvimento é de tal modo completo que muitos acreditam não haver qualquer paralelismo. Por exemplo, Jeremias 50.19 diz:
Trarei Israel para a sua m orada;
ele pastará no Carm elo e cm Basã
e se fartará
nas colinas de Efraim e em Gileade
Há certo desenvolvimento nos dois primeiros versos (alguns poderiam chamar isso de sinonímico, mas a reflexão move-se do retomo para a morada que está a espera de Israel). O segundo par pode repetir a ideia dos dois versos, com o paralelismo desenvolvido mais em função da métrica do que do significado. Porém, ali o movimento vai do ato de pastar para os resultados (apetites satisfeitos). Mas considerem os também Salmos 139.4:
Antes mesmo que a palavra me chegue à língua,
tu. Senhor, já a conheces toda.
Aqui não há qualquer paralelismo, pois o segundo verso completa a ideia do primeiro.

Em suma, o leitor deve deixar sempre que os próprios versos digam em que base eles se situam na escala do sinonímico para o sintético ou para o não paralelismo (métrico). Devo admitir que meus próprios estudos me convenceram de que Berlin e Longman estão corretos, principalmente quando dizem que a tendência na poesia hebraica é acrescentar outras nuances no segundo verso. Quase todos os exemplos chamados de “sinonímicos” com os quais me deparei em meus estudos (como Sl 19.1; 103.7, 11-13) exibiam algum grau de desenvolvimento sintético. Alter resume essa escola de pensamento quando afirma que “um argumento pelo movimento dinâmico de um versículo ao seguinte estaria muito mais próximo da verdade, muito mais próximo do modo como os poetas bíblicos esperavam que o público prestasse atenção às suas palavras” (1985:10). Mas, embora isso esteja de fato “mais próximo da verdade”, pode ser também que a nova escola seja culpada por um excesso: ao afirmar que existe “sempre” o movimento.

Vamos considerar Provérbios 3.13-20, outro texto em geral usado como exemplo de paralelismo sinonímico. Quase todos os pares exemplificam de fato o paralelismo progressivo, como no versículo 16:
O alongar-se da vida está na sua mão direita,
na sua esquerda, riquezas e honra.
No versículo 17:
Os seus caminhos são caminhos deliciosos,
e todas as suas veredas, paz.
Enquanto o versículo 14 é virtualmente sinonímico:
porque melhor é o lucro que ela dá do que o da prata,
e melhor a sua renda do que o ouro mais fino.
É possível argumentar que o segundo verso toma o primeiro mais vívido (o mesmo poderia ser dito de Is 53.5), mas isso pouco diferencia o significado. Em resumo, eu concluiria que em alguns exemplos (como Is 53.5; Pv 3.14) não existe qualquer esclarecimento adicional e, portanto, eles se ajustariam ao significado normal de “paralelismo sinonímico”. Embora alguma nuance (vivacidade ou concretude) possa ser acrescentada, ainda há sinonímia. Quando existe um acréscimo de significado, a extensão do desenvolvimento sintético (ou formal) se diferirá de caso para caso, sendo preciso um estudo exegético para se chegar a uma decisão.

3. O paralelismo culminante é um tipo de paralelismo progressivo, mas nesse caso várias unidades levam o pensamento a um clímax. Por exemplo, consideremos Salmos 8.3-4 (os vv. 4-5 são citados em Hb 2.6-8):
Quando contemplo os teus céus,
obra dos teus dedos,
e a lua e as estrelas
que estabeleceste,
que é o homem, para que te lembres dele?
E o filho do homem, para que o visites?
Os primeiros quatro versos se constroem num sentido progressivo para o desenlace culminante nos versos paralelos do versículo 4. Otto Kaiser fala de um tipo particular de paralelismo culminante no qual o segundo verso repete a palavra-chave do primeiro e, então, acrescenta o pensamento culminante (1975:322). Por exemplo, Salmos 29.1-2:
Dai ao Senhor , ó filhos dos poderosos,
dai ao Senhor glória e força.
Dai ao Senhor a glória devida ao seu nome;
adorai o Senhor na beleza da sua santidade.

4. O paralelismo antitético inverte a ênfase dos outros paralelismos e é o terceiro dos tipos importantes (os outros dois são, como vimos, o sinonímico e o sintético). Em vez de haver um desenvolvimento de uma ideia no segundo verso, observa-se a ocorrência de um contraste com o primeiro verso. Apesar disso, ele ainda constitui um paralelismo, pois o segundo verso retoma o primeiro afirmando o oposto. Por exemplo, Provérbios 3.1 diz:
Filho meu. não te esqueças da minha instrução,
e guarde os meus mandamentos no teu coração;
Ambas as unidades declaram a mesma ideia, mas de modos opostos. Porém, em outros casos, a antítese tem elementos de paralelismo sintético, no qual o segundo traz um esclarecimento adicional, por exemplo, Salmos 20.7 diz:

Uns confiam em carros, outros, em cavalos;
nós, porém, nos gloriaremos em o nome do Senhor , nosso Deus.

O primeiro verso fala do que não confiar e o segundo do que confiar. Ver também Provérbios 1.7:
O temor do Senhor é o princípio do conhecimento.
Os insensatos desprezam a sabedoria e a instrução.
O sábio e o insensato formam a principal oposição no livro, mas há um claro desenvolvimento de “temor do Senhor ” (verso um) para “sabedoria” (verso dois). Ele é comparável ao contraste justo versus ímpio, como em Provérbios 3.33:
A maldição do Senhor permanece sobre a casa do ímpio,
mas ele abençoa o lar dos justos.

5. O paralelismo introvertido é um tipo particular de paralelismo antitético no qual dois versos são contrastados com outros dois. Frequentemente é apresentado em forma de quiasmo, em que os pares externos são contrastados com os pares internos (AB BA), como em Salmos 30.8-10 do Texto Massorético (Mickelsen 1963:326):
Por ti, SENHOR , clamei,
ao Senhor implorei.
Que proveito obterás no meu sangue,
quando baixo à cova?
Louvar-te-á, porventura, o pó?
Declarará ele a tua verdade?
Ouve, SENHOR, e tem compaixão de mim;
sê tu, SENHOR, o meu auxílio.

6. O paralelismo incompleto acontece quando um elemento do primeiro verso é omitido no segundo, algo que regularmente acontece em versos sinonímicos, como em Salmos 24.1, em que falta o predicado:
Ao SENHOR  pertence a terra e tudo o que nela existe, 
o mundo e os que nele habitam.

7. A variante de equilíbrio acontece quando o segundo verso compensa o elemento que falta acrescentando uma ideia adicional (Kaiser 1981:220, a partir de Cyrus Gordon). Isso ocorre com mais frequência do que a forma incompleta pura, como em Salmos 18.17:
Livrou-me do forte inimigo
e dos que me aborreciam, pois eram mais poderosos do que eu.

3. Linguagem e imagem poéticas

Os salmistas usaram muitas das técnicas retóricas discutidas nos capítulos anteriores, como sinonímia, clímax e quiasmo. Além disso, eles usaram paronomásia (jogo de palavras), aliteração (os versos começam com a mesma letra do alfabeto), acrósticos (cada início de verso com uma letra sucessiva do alfabeto) e assonância (palavras que soam de forma semelhante). A paronomásia é exemplificada em Isaías 5.7: “Ele esperou justiça [mispãt] mas houve sangue derramado [mispãh] \ retidão [sédãqâh], mas houve clamor por socorro [se‘ãqâh]' \ Salmos 119 oferece um bom exemplo tanto de aliterações quanto de acrósticos. As estrofes desse magnífico hino que celebra a Palavra de Deus começam com letras sequenciais do alfabeto, e, dentro de cada estrofe, todos os versos começam com a mesma letra (sobre outros poemas acrósticos, cf. SI 25; 34; 37; 111; 112; Lm 3). A assonância é vista em Jeremias 1.11-12, em que Deus mostra a Jeremias um “ramo de amendoeira” [sãqêd] e o associa com a promessa de que ele está “vigiando” [sõqêd] o seu povo. Kaiser busca um termo equivalente: Deus mostrou a Jeremias um “ramo de salgueiro” e disse: “Pois estarei de olheiro em meu povo, caso não se arrependa” (1981:227) [adaptado do original em inglês].

O uso de imagem figurada na poesia é particularmente rico. Os poetas em geral apreendem as experiências cotidianas do povo para ilustrar as verdades espirituais que sustentam. Em Salmos 1.3-4, o autor com para o justo, que é “com o árvore plantada junto às correntes de águas, / que dá seu fruto no tempo certo”, com o ímpio, que
é “a palha / que o vento dispersa”. Tais símiles são encontrados ao longo da poesia bíblica (Jó 30.8; SI 31.12; Pv 11.12; ls 1.30).

As metáforas são ainda mais frequentes. Em uma metáfora especialmente satisfatória, Amós 4.1 se dirige às “vacas de Basã (...) que [oprimem] os pobres (...) e [dizem] ao marido: Dá cá, e bebamos” . Em Salmos 19.1,3, a criação é personificada como um arauto (“Os céus proclamam a glória de Deus, / e o firmamento anuncia as obras das suas mãos”) e como um emissário estrangeiro (“Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som” ). As metáforas para descrever Deus, é claro, são particularmente frutíferas. Deus é retratado como um rei empossado, um pastor, um guerreiro, um cocheiro, um pai, uma pedra, um poço refrescante e muito, muito mais.

Tais imagens conduzem os leitores no texto e os forçam a retratar a verdade de um modo novo. Quando se pede a Deus: “Embraça o escudo e o broquel e ergue-te em meu auxílio” (SI 35.2), a ideia de Deus como o guerreiro vitorioso que luta ao lado do seu povo acrescenta um rico significado a esse salmo que pede a ajuda de Deus contra os ex-amigos de Davi, que o caluniam. O potencial de tais imagens para a pregação é realmente grande! Cada ocorrência é um exemplo que espera para ser desvelado.

Em suma, identificar o tipo de paralelismo é uma importante ajuda para a interpretação. Isso nos ajudará a evitar uma superinterpretação dos versos sucessivos e a verificar os elementos fundamentais da passagem. Quando os padrões estruturais são combinados com a imagem empregada neles, o resultado é uma rica experiência de devoção e de pregação. No entanto, a riqueza acrescentada pelas metáforas é acompanhada de um problema: a falta de especificidade e precisão. Como diz Gerstenberger: “A linguagem poética rompe as fronteiras das visões de mundo racionalistas, chegando a essência das coisas intuitivamente. Portanto, o uso da linguagem comparativa, indutiva, indireta é imperativo para o poeta” (1985:416-417). Nesse caso, não se deve procurar o “significado literal”, mas antes o “significado pretendido”, isto é, o significado pretendido no contexto do poema. Por exemplo, Salmos 44.19 declara: “Para nos esmagares onde vivem os chacais”, o que significa uma área inabitável, desolada.

O salmo fala sobre uma esmagadora derrota militar (cf. v. 9-16) e a retoma numa seção que alega a inocência de Israel diante de Deus (v. 17-22). Embora a derrota fosse realmente séria, as metáforas como “onde vivem os chacais” e “ovelhas para o matadouro” (v. 22) constituem uma licença poética para descrever a constante inimizade de
seus vizinhos hostis e o sofrimento que Israel experimenta por causa disso.


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OSBORNE, Grant R. Espiral hermenêutica. Vida Nova: São Paulo, 2009. ps. 286-296.



quinta-feira, 20 de outubro de 2016

AS REGRAS BÁSICAS DE HERMENÊUTICA BÍBLICA PARA A INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS



O primeiro texto que escrevi sobre hermenêutica bíblica foi específico para a leitura de textos poéticos nas Escrituras Sagradas. Agora nesse texto, com base em outro excelente livro sobre hermenêutica, a saber "O conhecimento das Escrituras" do Sproul, gostaria de abordar algumas regras básicas para a interpretação geral das Escrituras.

A primeira regra é a que a Bíblia deve ser lida como se lê qualquer outro livro. Isso não significa que é Bíblia é como qualquer outro livro, mas que ela deve ser lida como se lê qualquer outro livro. A Bíblia não é um livro alienado, e nem irracional, Ela é racional e contem um conteúdo a passar. Há um problema, muitos cristãos leem o jornal, revista e outros livros de forma racional, e quando vão ler a Bíblia parece que as coisas mudam, e a irracionalidade toma conta de sua mente, e o resultado disso é uma péssima interpretação do texto, sem levar em conta o contexto e a intensão do autor.

A segunda regra é ler a Bíblia de forma existencial. Quero dizer com isso, que devemos ler a Bíblia como se fôssemos um personagem que está assistindo ao vivo os fatos relatados no texto. Devemos sentir o texto, entrar na história.

A terceira regra é que as narrativas históricas devem ser interpretadas pelas passagens didáticas. Isso significa que devemos ficar atentos com um erro muito comum nos púlpitos, de criarem doutrinas ou princípios teológicos em cima de passagens históricas. Os textos didático sim têm autoridade para formular uma doutrina. Por isso é necessário um texto didático para interpretar o histórico.

A quarta regra é a de interpretar o implícito pelo explícito. Isso significa que há assuntos que são implícito, que não há uma afirmação explicita, e quando isso acontece devemos usar as passagens que são explícitas para sua melhor compreensão. Esse é um erro muito comum nas comunidades evangélicas. Há muitas doutrinas firmadas em deduções, e quando questionadas usam bases implícitas, sem nenhuma clareza.

A quinta regra é determinar cuidadosamente o significado das palavras. Os autores bíblicos escreveram a bíblia através de palavras, e essas palavras têm significados, têm sentidos. Não podemos ignorar esses sentidos no contexto em que foram escritos. Quando conhecemos esses significados podemos compreender melhor o todo do textos escritos na Bíblia.

A sexta regra é a observação dos paralelismos na Bíblia, pois o paralelismo nos apresenta ideias completas, e se negligenciarmos isso estaremos acrescentando ou ocultando algo do sentido do texto, e isso é desonesto à hermenêutica bíblica. Pra isso é preciso um bom material, no caso dos leigos algumas versões bíblicas que nos proporcionam uma separação dos paralelismo seria ideal para melhor interpretação do texto.

A sétima regra é saber diferenciar provérbios de leis. Sproul disse que um erro comum em interpretação e aplicação bíblica é dar ao provérbio a mesma força ou peso de um absoluto moral. Provérbios são dísticos pequenos e atraentes desenhados para expressar truísmos práticos. Refletem princípios de sabedoria para uma vida piedosa. Não refletem leis morais que devem ser aplicadas de forma absoluta a todas as possíveis situações da vida.[1]

A oitava regra é observar a diferença entre o espírito  e a letra da lei. Isso significa que devemos tomar muito cuidado com o legalismo que muitas vezes criamos em nosso coração ao ler as Escrituras, e isso pelo fato de não compreender a essência do texto, o lado espiritual da lei.

A nona regra é tomar muito cuidado com as parábolas. Devemos observar qual o propósito original da parábola. Entender o contexto e a intensão do contador. Elas não são tão simples, como muitos imaginam, elas são complexas se não compreendermos a história ou contexto em que o autor vivia no momento e o seu publico alvo.

A décima regra é o cuidado com as profecias de predições. Existem dois extremos que tomam conta da mentalidade de muitos cristão nos dias atuais; a primeira é o ceticismo a respeito das profecias de predições, não acreditando e dando uma enfase naturalista nas profecias tanto do Antigo, quanto do Novo Testamento; e a segunda é a desacerbada visão contemporâneo dessas profecias, que as enxergam em tudo o que acontecem hoje. Ambos são frutos de uma equivocada hermenêutica, pois precisamos ter em mente que tais profecias realmente aconteceram como ação de Deus na vida do seu povo, e algumas aconteceram ao pé da letra, como havia sido revelada, já outras têm um fim escatológico, e não necessariamente irá acontecer ao pé da letra. As profecias apocalípticas são repletas de figuras de linguagens, e por isso são mais complexas, pois é preciso um alto conhecimento da cultura dos receptores bíblicos (judeus) para entender o sentido e significado de tais profecias.

Essas são as regras básicas para uma boa interpretação bíblica segundo Sproul. Se atentarmos para cada regra com zelo, teremos que tirar um melhor tempo para a leitura das Escrituras, mas valerá a pena, pois assim, evitaremos um maior risco de impor sobre um texto algo que ele não está querendo dizer, muito menos ocultar sua verdade.


Nota bibliográfica

SPROUL, R.C. O conhecimento das Escrituras. Tradução de Heloísa Cavallari Ribeiro Martins. Cultura Cristã: São Paulo, 2003.


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FÉRES, Leonan. Texto escrito no dia 20/10/2016.



ALGUNS PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS PARA A INTERPRETAÇÃO DOS TEXTOS POÉTICOS



Há um crescimento no interesse de muitos cristãos em saber ler de forma adequada as Escrituras Sagradas, principalmente o Antigo Testamento, mas há um obstáculo: a falta de conhecimento na área da hermenêutica bíblica. Por isso, com base no livro "A Espiral Hermenêutica", de G.R. Osborne, venho expor alguns princípios básicos da hermenêutica para uma boa abordagem e interpretação nas passagens poéticas (com enfase nos salmos).

O primeiro princípio é a observação das estrofes do poema, ou do cântico. O elemento primário da poesia hebraica é o padrão de versos e estrofes paralelas.[1] É importante ficar atento ao desenvolvimento da ideia no salmo, pois assim descobriremos a quebra entre as estrofes. A maioria dos salmos (se não for dizer que todos) são formados por paralelismos, que era uma forma poética de um hebreu escrever. Para melhor compreensão desse primeiro princípio, aconselho lerem mais sobre os tipos de "paralelismos" da poesia hebraica.

O segundo princípio é agrupar os versos paralelos. O poeta escreve de forma poética, emotiva, e isso não pode ser ignorado. Por isso é importante saber agrupar os versos de acordo com a forma poética de um hebreu escrever. Se lermos o texto poético ignorando esse princípio corremos um grande risco de enxergar mais do que o salmista quis dizer no texto, ou acabar perdendo algo de suma importância. Pra isso indico o leitor adquirir uma Bíblia que já contenha as divisões das "linhas" (ideias completas) e cólos (subdivisão das ideias). Há algumas como a Bíblia de Jerusalém e NVI.

O terceiro princípio é atentar para a linguagem metafórica. Esse princípio também não pode ser ignorado pelo fato da poesia ter a linguagem figurada mais evidente no seu todo.

O quarto princípio é observar o pano de fundo histórico do salmo. Normalmente, nas nossas traduções bíblicas, em quase todas as versões, temos os títulos antes de cada salmo, isso facilita o cumprimento desse princípio. É o saber o contexto, como, quem e quando o salmo foi escrito.

O quinto princípio é respeitar o tipo de salmo em que está lendo. Há diversos tipos de salmos. Alguns são de adoração, outros lamentação, outros gratidão e etc. Ambos são diferentes uns dos outros, não iremos compreender um salmo de lamentação se o lermos como se fosse de gratidão. Por isso é preciso saber o tipo de salmos que estamos estudando.

O sexto princípio é estudar os salmos messiânicos, primeiramente, com o seu propósito histórico antes do seu significado escatológico.

O sétimo e ultimo princípio a ser abordado é estudar o salmo como um todo antes de tirar nossas próprias conclusões. O fluxo de ideias no salmo é crucial para o seu significado.[2]


Notas bibliográfica

[1] OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. Tradução de Daniel de Oliveira, Robinson N. Malkomes, Sueli da Silva Saraiva. Vida Nova: São Paulo, 2012. p. 305.
[2] Ibid, p. 308.


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FÉRES, Leonan. Texto escrito no dia 20/10/2016.



quarta-feira, 19 de outubro de 2016

ESTRUTURA DOS SALMOS


Os estudiosos já não consideram os salmos como obras isoladas e reunidas de maneira aleatória e artificial. Ao contrário, o saltério é entendido como um todo canônico, e os estudos tendem a se concentrar ou na macroestrutura, considerando-se "padrões e temas abrangentes", ou na microestrutura, isto é, "conexões entre grupos menores de salmos". Os dois, é claro, são interdependentes (Howard 1999:332-333).

O ponto decisivo, como na maioria das categorias consideradas neste livro, veio como o início da crítica literal e retórica, bem como o início da crítica do cânon nos anos oitenta, especialmente com o The Editing of the Hebrew Psalter [A edição do saltério hebraico] (1985), de Gerald H. Wilson. Usando paralelos extrabíblicos,  ele demonstra que o saltério foi cuidadosamente editado e, lançando mão de técnicas crítico-formais, mostra que há cinco "livros" de salmos. Cada livro termina com uma doxologia que marca cada coleção (Sl 41.13; 72.18-19; 89.52; 106.48; 145.21). Dessa forma podemos distinguir os seguintes livros (cf. Limburg 1992: 526-527; Waltke 1997: 1109-1111):
  • Introdução (Sl 1-2). Alguns consideram os dois como um único salmo emoldurado pelas bem-aventuranças dos versículos 1.1 e 2.11. O primeiro convida o justo a meditar sobre os salmos, e o segundo concentra-se no rei ungido no Monte Sião.
  • Livro 1 (Sl 3-4). Os salmos aqui concentram em Davi e em petições por proteção divina contra os inimigos. A maioria dos salmos é atribuída a Davi.
  • Livro 2 (Sl 42-72). Há uma boa possibilidade de que os dois primeiros livros fossem originalmente um só, sendo que sessenta dos setenta salmos versam sobre Davi. Salmos 42-49 são atribuídos aos "filhos de Coré", provavelmente uma família encarregada da música do templo, enquanto Salmos 51-65; 68-70 seriam davídicos.
  • Livro 3 (Sl 73-89). Esses são principalmente atribuídos a Asafe (Sl 73-83) e foram uma série de lamentos que se concentram no rompimento da aliança e no triste estado da nação.
  • Livro 4 (Sl 90-106). Uma nova esperança é apresentada quando Javé é rei (Sl 93; 95-99) e realiza seus poderosos atos em favor de seu povo. Moisés desempenha um papel central (é mencionado sete vezes), a fim de mostrar que o mesmo Deus, que salvou Israel antes, pode fazê-lo agora. Ainda que a monarquia tenha acabado, Javé pode salvá-los.
  • Livro 5 (Sl 107-145). Deus realmente livrou os israelitas de suas dificuldades (talvez do exílio) e está na hora de se voltar ao modelo de Davi (Sl 108-110; 138-145). Salmos 120-143 sõ "cânticos" de ascensão que se concentram na peregrinação para Jerusalém com a finalidade da adoração.
  • Conclusão (Sl 146-150).
A tradição judaica acreditava que a coletânea era uma reflexão deliberada sobre os cinco livros do Pentateuco. Outros cham que os livros podem ser considerados como uma história temática de Israel, na qual: o Livro 1 = o conflito de Davi com Saul; o Livro 2 = a realeza de Davi; o Livro 3 = a crise assíria; o Livro 4 = a destruição do templo e o exílio; e o Livro 5 = louvor e reflexão sobre o retorno do exílio (Hill e Walton 2000: 346, baseado em Wilson). O que é interessante e viável (se ajustando aos temas de cada seção), mas, no fim, não pode ser provado.

Outro assunto importante são os títulos e sobrescritos em muitos dos salmos (116 dos 150). São eles confiáveis e, portanto, podemos tomá-los como dados históricos confiáveis? Eles foram acrescentados após a escrita dos salmos e boa parte do material consiste em comentários musicais técnicos, podendo ser uma referência, a melodias específicas (por exemplo "de acordo com o gittith" [Sl 8; 81; 84], ou "de acordo com o sheminith" [Sl 6;12]). Alguns parecem indicar o autor da composição (por exemplo, filhos de Coré, Davi, Asafe). Outros associam os salmos com os diversos eventos da vida de Davi. A crítica considera que se trata de adições recentes, cujos dados históricos provêm de alguém que buscava uma posição adequada para muitos dos salmos (Limburg 1992: 528). No entanto é necessário se perguntar por que muitos dos salmos de Davi não possuem os sobrescritos históricos, se estes foram acrescentados bem mais tarde. Além disso, muitos salmos nos livros históricos têm esse tipo de sobrescritos (Êx. 15.1; Dt 31.30; Jz 5.1; 2Sm 22.1; Is 38.9; Jo 2), que são normalmente aceitos. Por fim, sobrescritos são encontrados também nos hinos sumérios, acádios e egípcios, sendo comuns no antigo Oriente Médio (Waltke 1997:1100-1102). Além disso, as diferenças entre os sobrescritos encontrados no Texto Massorético e na LXX levaram muitos a duvidar de sua autenticidade, e a ambiguidade da partícula hebraica  (que pode significar “de acordo com, para, referente a, relacionado com”) torna-se difícil saber se os salmos foram escritos por Davi, sobre ele ou dedicado a ele (VanGemeren 1991: 19-20). Em resumo, podemos aceitar os sobrescritos como prováveis portadores de um material confiável, mas nem sempre podemos saber o que eles significam.


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OSBORNE, Grant R. Espiral hermenêutica. Vida Nova: São Paulo, 2009. ps. 285-286.



terça-feira, 18 de outubro de 2016

A AFIRMAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE DEUS NA CONSTITUIÇÃO DO SER HUMANO


Há na humanidade uma ideia generalizada a respeita da existência da Divindade, de um Ser superior do qual nenhum dos seres humanos pode fugir devido ao modo como o Criador os fez. Na Teologia, essas ideias são chamada de "ideias inatas", porque todos os seres humanos nascem com elas.

Ideias inatas sobre a existência de Deus

A noção da Divindade é praticamente uma crença de toda a raça humana no seu estado natural. Todos os seres humanos que vêm ao mundo nascem com a ideia de um Ser superior, mesmo que não saibam formular corretamente conceitos sobre ele. A alma de cada ser humano tem implantadas em si certas noções que são comuns a todas as raças, por mais distantes e isoladas que estejam umas das outras e aquilo que chamamos de "civilização cristã", ou "mundo ocidental". Quando Deus criou o homem, ele estampou nele a sua imagem. Nem mesmo a queda do Éden conseguiu destruir completamente o que Deus havia colocado no coração dos seres humanos, pois as suas leis morais básicas estão implantadas dentro deles, e os homens serão julgados por elas, segundo o ensinamento das Santas Escrituras (ver Rm 2.11-16).

A perspectiva da existência de Deus pode ser ilustrada pela referência à criação do homem (Gn 2.7-8). Esses dois versículos nos dizem algo muito importante a respeito da experiência humana com Deus. O primeiro homem, Adão, tinha uma consciência absolutamente clara da existência de Deus, porque este se lhe revelou proposicionalmente, isto é, em palavras, conversando com ele no lugar onde fora criado e colocado. Desde o início de sua existência, Adão possuía uma consciência de Deus. Esta era inescapável em Adão, por causa da constituição da sua natureza. Ele não podia fugir da presença de Deus e nem relacionar-se no Éden sem a forte noção da presença divina.

Mesmo depois da Queda, a ideia da consciência de Deus não desapareceu do ser humano. Com a Queda houve a quebra do relacionamento espiritual; o homem ficou separado de Deus, morto espiritualmente, mas a consciência do divino permaneceu dentro dele.

Calvino usa duas expressões elucidativas a respeito da noção de Deus que até os pagãos possuem. Ele atribui essas noções inatas a duas propriedades naturais no homem, as quais a Queda não destruiu porque Deus as plantou de modo indelével no coração humano: semen religionis e sensus divinitatis.

a. Semen Religionis [1] 
A semente da religião foi plantada no coração do homem quando Deus o criou. Nenhum homem é ateu por natureza. Nenhum homem vem ao mundo sem essa semente da religião. Calvino disse: "como a experiência mostra, Deus plantou uma semente de religião em todos os homens". [2]

Todos têm uma religião natural como resultado da noção inata de Deus com a qual nasceram. Porém, essa religião não é suficiente para as necessidades do homem no estado de pecado em que se encontra. Nesse tipo de religião o homem tem medo, porque conhece somente a justiça de Deus. Ele não tem noção alguma de sua misericórdia. Daí a ideia de oferecer sacrifícios, em todas as religiões de povos primitivos para aplacar a ira dos deuses. A religião natural inspira medo, não esperança e confiança.

A religião natural mostra que há um Deus com atributos como poder, divindade e justiça, como é ensinado em Romanos 1. Esses são atributos que  Deus manifesta na natureza, mas sua misericórdia, o seu amor, sua graça, etc., são expressões da sua vontade, e ele as manifesta quando quer. Embora eles sejam parte da essência de Deus, a sua manifestação depende do exercício da sua vontade. Isso não faz parte das ideias inatas de Deus que a religião natural traz.

b. Sensus Divintatis [3]
A semente da religião existe porque o ser humano nasce com a noção de que existe um Ser divino por trás de tudo o que ele vê e sente. A ideia de Deus está plantada na alma humana, mesmo que, por causa da perversão do coração humano, não haja um relacionamento de harmonia com o Deus verdadeiro.

Calvino disse que essa "consciência de divindade" foi implantada por Deus em todos os homens "para evitar que alguém se refugie numa pretensa ignorância".[4] Ele continua: "Os homens de juízo sadio sempre estarão certos de que o senso de divindade, que jamais pode ser apagado, está gravado na mente dos homens".[5] Concluindo sua ideia sobre o sensus divintatis, Calvino diz:
Portanto, visto que desde o começo do mundo não tem havido nenhuma religião, nenhuma cidade, em resumo, nenhuma família que pudesse viver sem religião, nisso repousa a tácita confissão de que o sensus divintatis está inscrito nos corações de todos os homens.[6]
Em Atos 17, o episódio do Areópago de Atenas mostra que todos os homens, sem terem a luz da revelação especial, possuem o senso de que há um ser maior do que eles, ao qual adoram, mesmo que essa semente da religião e o senso de divindade sejam prejudicados devido ao efeito do pecado. Por causa da corrupção do coração, eles perderam os dados preciosos a respeito de Deus, mas ainda possuem a consciência da divindade e a expressam nos cultos que lhe prestam, mesmo sem conhecê-lo devidamente.

Romanos 1.18-22 mostra o semen religionis e o sensus divintatis de maneira inequívoca. Nessa passagem, Paulo afirma claramente que os homens "detêm a verdade de Deus [e a trocam] pela injustiça" (v.18). A palavra grega para "detêm" (katechêo) é mais bem traduzida por suprimir. Ela dá a ideia de que o homem possui alguma coisa, mas algo leva a lutar contra o que é natural nele - o conhecimento de Deus. Os homens caídos são culpados por suprimirem a verdade. O que Paulo quis dizer com isso? Ele está afirmando que a verdade suprimida é o conhecimento de Deus que lhes foi manifesto (v.19) Deus se lhes revelou, mas eles não quiseram a verdade de Deus, preferindo a injustiça (ou a mentira) deles próprios. É esse conhecimento de Deus, que é a consciência de sua existência, o homem procura negar. Todo homem possui essa consciência de Deus, muito embora lutam desesperadamente para negá-la.

Ela transmite a ideia de que o homem possui alguma coisa, mas algo o leva a lutar contra o que é natural nele - o conhecimento de Deus. A depravação humana conduz o homem à supressão daquilo que é próprio dele: a consciência da existência de Deus, que o leva a ser um ser religioso. Por mais que o homem lute, esse conhecimento de Deus não pode ser apagado. Essa noção da existência de Deus é inescapável nele. Todavia, o homem é condenado porque tenta negar o que não pode ser negado: a existência de Deus. A corrupção do seu coração o leva a inverter a ordem das coisas, mas não apaga nele a consciência da divindade e a semente da religião. O homem não pode escapar da consciência de Deus. Ele só suprime o conhecimento verdadeiro de Deus, ma não foge da consciência de Deus.

Todos os homens vivem num ambiente que revela a existência de Deus, e não podem escapar dessa presença de Deus que lhes impacta o ser. Eles podem até suprimir o conhecimento verdadeiro de Deus e podem batalhar contra a ideia do Deus verdadeiro, mas não podem fugir da consciência da sua existência.

Portanto, com o estudo do semen religionis e do sensus divintatis não é difícil entender porque há certas ideias inatas a respeito da Divindade. Elas são naturais num ser criado. Por definição, um ser criado não pode funcionar como se não tivesse sido criado. Portanto, a existência de Deus, mesmo que não possamos prová-la, deve ser pressuposta e assumida.

Essa ideia inata da existência de Deus é o resultado da constituição da natureza humana, daquilo que Deus nela plantou. Essa ideia é inata como inatas são as ideias de espaço e tempo na mente humana. A intensidade dessa ideia varia de acordo com as raças e civilizações, mas ela é universal.

Os atributos de Deus, que não podem ser percebidos pelos sentidos humanos, são claramente vistos pela mente humana na revelação da natureza.

O ensino de Paulo a respeito da ideia inata de Deus é confirmado e ilustrado no pensamento monoteísta de filósofos pagãos:
O monoteísmo dos pagãos prova sobre as ideias inatas a respeito de Deus
Mesmo depois da Queda, o monoteísmo não desapareceu da religião humana. O monoteísmo não propriedade exclusiva da religião revelada, que é o judaísmo e seu desdobramento, o cristianismo. Ela existe mesmo entre pagãos. Portanto, a existência do monoteísmo na alma dos homens é também uma evidência de que há ideias inatas sobre Deus.

b.1. Os pagãos mais antigos eram monoteístas
Muitos dos filósofos pagãos foram "teístas", monoteístas e reconheciam apenas um ser supremo. A multiplicidade de deuses em muitas culturas não indica a crença em divindades autoexistentes, mas todas elas, como divindades inferiores foram criadas por um deus maior e mais poderoso. A palavra "deuses" muitas vezes foi empregada pelos pagãos do mesmo modo como é usada na Bíblia (Jo 10.34) - para se referir a anjos, príncipes e autoridades humanas.

O monoteísmo é a religião original de todos os homens. O politeísmo, como veremos adiante, é uma corruptela do panteísmo. A natureza do homem reclama a existência de um único Deus. Apenas a pecaminosidade voluntária faz o ser humano sair dessa condição de monoteísta, um posicionamento contra o qual ele, do modo como Deus o fez, luta freneticamente. Calvino disse:
O nome de um Deus supremo tem sido universalmente reconhecido e celebrado. Porque aqueles que costumavam adorar uma multidão de deuses, onde quer que falassem de acordo com o sentido genuíno da natureza, usaram simplesmente o nome de Deus no número singular, como se estivessem contendendo com o próprio Deus.[7]
Sem citar o nome, mas referindo-se claramente a Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), diz Calvino:
Todavia não há, como diz o eminente pagão, nenhuma nação tão bárbara, nenhum povo tão selvagem que não tenha uma convicção profunda de que há um Deus. E eles, que em outros aspectos da vida parece ao menos diferir dos animais, ainda continuam retendo alguma semente de religião.[8]
Em sua obra De Legibus, I, 8, Cícero escreveu:
Não há nenhum animal, exceto o homem, que tenha qualquer noção de Deus; e entre os homens não há nenhuma tribo tão selvagem que, mesmo que não conheça que espécie de Deus deve ter, não saiba que deve haver um.[9]
Os apologistas cristãos dos primeiros séculos, Tertuliano e Clemente de Alexandria, sustentaram universalmente a posição de que a mente humana é naturalmente e por criação monoteísta.

b.2. O monoteísmo natural dos pagãos é provado por dados bíblicos
Além dos hebreus, outros povos mencionados na Bíblia dão claros indícios de seu monoteísmo. Por exemplo, com relação aos egípcios, há Agar (Gn 16.1,13) e Faraó, o rei do Egito (Gn 41.38); quanto aos filisteus, há Abimeleque, o rei desse povo (Gn 20.3-8).

A ideia de Deus não é exatamente a mesma em duas culturas ou mesmo em dua pessoas distintas de uma mesma nação. Todavia, a constituição mental delas é a mesma. Um homem pode ter um senso da justiça de Deus mais marcante do que outro, enquanto este pode ter uma noção mais aguçada do poder de Deus, ou de sua sabedoria. Isso vai depender do modo como cada um observa os fenômenos da criação que estão ao seu redor.

É importante observar que a apostasia e o ateísmo são tentativas de esconder essa ideia inata de Deus. A condição abrutecida do mundo idólatra não contradiz a existência da ideia inata de Deus. A ideia fundamental existente na mente humana pode não ser desenvolvida, ou pode ser viciada pelo pecado, mas ela continua a existir no homem mesmo depois da Queda.

O monoteísmo foi a forma original de religião; o panteísmo e politeísmo foram formas subsequentes. Segundo as Escrituras, o homem foi criado monoteísta. Seu primeiro estado foi o seu melhor estado. Ele caiu de um estado mais alto para um mais baixo no que diz respeito ao caráter e ao conhecimento.

- O primeiro estágio da corrupção do monoteísmo primitivo foi o panteísmo. Nesse modo de pensar, a unidade de Deus permanece, mas a diferença entre ele e o universo criado é negada, porque o panteísmo crê que o universo seja uma extensão de Deus. O fato de que a unidade de Deus é preservada prova que essa noção é natural à mente humana. Nesse estágio, o sol, a lua e as estrelas passaram a ser adorados como uma extensão da divindade. Tudo era Deus.

- O segundo estágio do declínio do monoteísmo primitivo foi o politeísmo. Nesse caso, a unidade ou a substância única do panteísmo foi subdividida, e as subdivisões personificadas. A personalidade de Deus perdida no panteísmo foi devolvida no politeísmo, só que numa multiplicidade de deuses. Nesse estágio, os homens começaram a fazer representações de Deus. Como os planetas, ou outros corpos celestes, eram visíveis somente durante a noite, eles inventaram imagens para representá-los. Isso produziu a adoração de imagens. Eles fizeram imagens de Júpiter, Saturno, Marte, Apolo, etc. Então, foi nesse estágio que teve início a idolatria.


Notas bibliográficas:

[1] Essa expressão é usada por Calvino em vários de seus escritos. Em seu comentário sobre 1João 1.5, Calvino afirma: "Há duas partes principais da luz que ainda permanece na natureza corrupta: primeiramente, a semente da religião que é plantada em todos os homens; em segundo lugar, a distinção entre o bem e o mal, que está gravada na consciência deles".
[2] Institutas 1.4 1.
[3] Calvino diz: "Existe dentro da mente humana, e, de fato, por instinto natural, uma consciência da divindade (Institutas, 1.3. 1).
[4] Institutas, 1.2. 1.
[5] Institutas, 1.3. 3.
[6] Institutas, 1.3. 1.
[7] Institutas, 1.10.
[8] Institutas, 1.3. 1 (itálico acrescentado).
[9] Citado por W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1971), vol. 1., 200 (ver At 17.24-28).


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CAMPOS, Heber Carlos. O ser de Deus. 3ª Ed. Cultura Cristã: São Paulo, 2012. ps. 30-36.