domingo, 13 de novembro de 2016

A PESSOA NA SUA TOTALIDADE - INTRODUÇÃO À TRICOTOMIA E DICOTOMIA


Um dos aspectos mais importantes da visão cristã do homem é a de que devemos vê-lo em sua unidade, como uma pessoa total. Os seres humanos têm sido imaginados como consistindo de partes separadas e, algumas vezes, de partes distintas, que são, dessa forma, abstraídas da totalidade. Assim, nos círculos cristãos, tem sido crido do homem como consistindo tanto de “corpo” e  “alma” como de “corpo”, “alma” e “espírito”. Tanto os cientistas seculares como os teólogos cristãos, contudo, estão reconhecendo gradativamente que tal entendimento dos seres humanos está errado, e que o homem deve ser visto como uma unidade. Visto que nossa preocupação é com a doutrina cristã do homem, devemos dar uma nova olhada para o ensino bíblico a respeito dos seres humanos, para ver se de fato isto é assim.
O que devemos observar primeiro de tudo é que a Bíblia não descreve o homem cientificamente; na verdade, o julgamento (dos teólogos) é que a Bíblia não nos dá nenhum ensino científico a respeito do homem, nenhuma “antropologia” que deveria ou poderia estar em competição com uma investigação científica do homem nos vários aspectos de sua existência ou com a antropologia filosófica.[1]
Além disso, a Bíblia não usa uma linguagem científica exata. Ela usa termos como alma, espírito e coração mais ou menos indistintamente. Isto é por causa das partes do corpo que são tidas, não primariamente do ponto de vista de suas diferenças ou de suas inter-relações com outras partes, mas como significando ou enfatizando os diferentes aspectos do homem total em relação a Deus. Do ponto de vista da psicologia analítica e da fisiologia, o uso do Antigo Testamento é caótico: ele é o pesadelo do anatomista quando qualquer parte pode ser entendida como sendo a totalidade.[2]

Portanto, não é impossível construir uma psicologia bíblica exata e científica. Alguns têm tentado fazer isso. Um dos mais notáveis nessa tarefa é Franz Delitzsch, cujo livro System of Biblical Psychology foi originalmente publicado em 1855. Mas mesmo Delitzsch teve que admitir que “a Escritura não é um livro escolástico [or didática] de ciência” e que “é verdade que em assuntos psicológicos, assim tão pouco quanto em assuntos éticos ou dogmáticos, a Escritura abrange (ou contém) qualquer sistema proposto na linguagem das escolas”.[3]

Em 1920, o teólogo holandês Herman Bavinck escreveu um livro entitulado Biblical and Religious Psychology (Psicologia Bíblica e Religiosa). Semelhantemente a Delitzsch, ele admitiu que [a Bíblia] não nos fornece uma psicologia popular ou científica mais do que ela nos proporciona uma narrativa [schets] da história, geografia, astronomia ou agricultura...Mesmo se alguém desejasse tentar, seria impossível retirar da Bíblia uma psicologia que pudesse satisfazer as nossas necessidades. Porque não somente seria impossível ter uma narrativa completa de todos os vários dados, mas também as palavras que a Bíblia usa, tais como espírito, alma, coração e mente, foram emprestadas da linguagem popular dos judeus daqueles dias, ordinariamente possuindo um conteúdo diferente daquele que associamos com esses termos, e nem sempre usados no mesmo sentido. As Escrituras nunca usam conceitos abstratos e filosóficos, mas sempre falam a rica linguagem do dia a dia.[4]

Embora não derivemos uma antropologia ou psicologia científica exata da Bíblia, podemos aprender da Escritura muitas verdades importantes a respeito do homem. [...] Deveríamos nos lembrar novamente que a coisa mais importante que a Bíblia diz a respeito do homem é que ele está inescapavelmente relacionado a Deus. Berkouwer coloca este assunto da seguinte maneira: “Podemos dizer sem medo de contradição que a coisa mais notável no retrato bíblico do homem repousa nisto: que nunca chama a atenção para o homem em si mesmo, mas exige a nossa atenção mais plena para o homem em sua relação com Deus.”[5] Podemos acrescentar que a Bíblia também dirige nossa atenção para o homem à medida em que ele se relaciona com os outros seres humanos e com a criação.[6] Em outras palavras, as Escrituras não estão primariamente interessadas nas “partes” constituintes do homem ou na sua estrutura psicológica, mas nos relacionamentos que ele mantém.


Notas:

[1] G. C. Berkouwer. De Mens het Beeld Gods (Kampen: Kok, 1957), p. 211. Cf. Ray S. Anderson, On Being Human (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), p. 213.
[2] John A. T. Robinson. The Body (London: SCM Press, 1952), p. 16.
[3] A System  of Biblical Psychology, (Edinburgh: T & T Clark, 1867), p. 16.
[4] Bijbelsche en Religieuze Psychologie (Kampen: Kok, 1920), p. 13.
[5] Man, p. 195.
[6] Ver acima, p. 75-82 (texto em inglês).


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HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. Tradução de Heber Carlos Campos. 2ª Ed. Cultura Cristã: São Paulo, 2010. p. 224-226.



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