A primeira palavra do Novo Testamento que examinaremos é psyche, a palavra grega equivalente a nephesh, usualmente traduzida como “alma”. O léxico do Novo Testamento Grego de Arndt-Gingrich lista um número de significados para esta palavra, alguns dos quais são: “princípio de vida”, “vida terreal”, “assento da vida mais interior do homem” (incluindo sentimentos e emoções), “a sede e o centro da vida que transcende o que é terreno”, “aquilo que possui vida: uma criatura viva” (plural, pessoas). [39]
Eduard Schweizer afirma que psyche é usado freqüentemente nos Evangelhos para descrever o homem total, [40] para representar a verdadeira vida em distinção da vida puramente física, [41] e para referir-se à existência dada por Deus que sobrevive à morte. [42] Schweizer diz que Paulo usa psyche quando se refere à vida natural e à vida verdadeira; ele freqüentemente usa a palavra para descrever a pessoa. [43] No Livro do Apocalipse psyche pode ser usada para denotar a vida após a morte (como em 6.9). [44] Está claro, portanto, que psyche, como nephesh, freqüentemente significa a pessoa total.
Agora nos voltamos para a palavra pneuma, o equivalente do Novo Testamento a ruach, que quando se refere ao homem é mais usualmente traduzida como “espírito”. O léxico de Arndt-Gingrich dá oito significados, incluindo os seguintes: “o espírito como parte da personalidade humana”, “o ego de uma pessoa”, “uma disposição ou estado de mente”. Schweizer diz que Paulo usa pneuma para as funções físicas do homem, que ele é freqüentemente um paralelo de psyche, e que pode denotar o homem como um todo, com ênfase mais forte sobre o seu psíquico do que sobre a sua natureza física. [45]
George Ladd, numa discussão da psicologia paulina, diz-nos que no pensamento de Paulo o homem serve a Deus com o espírito e experimenta a renovação no espírito. Paulo algumas vezes contrasta o pneuma com o corpo como a dimensão mais interior em contraste com lado exterior do homem (2 Co 7.1; Rm 8.10). Pneuma pode descrever a auto-consciência do homem ( 1 Co 2.11). [46] W. D. Stacey argumenta que Paulo não vê o pneuma como algo que somente o regenerado tem: “Todos os homens têm pneuma desde o nascimento, mas o pneuma cristão, na comunhão com o Espírito de Deus, assume um novo caráter e uma nova dignidade” (Rm 8.10). [47]
É interessante observar que pneuma pode se referir à vida após a morte. Como já vimos, Hebreus 12.23 descreve santos mortos como “os espíritos dos justos aperfeiçoados”, e ambos, Cristo (Lc 23.46) e Estevão (At 7.59), como moribundos encomendando seus espíritos a Deus o Pai ou Deus o Filho. Cristo é também dito ter pregado aos “espíritos em prisão”, obviamente se referindo a pessoas falecidas (1 Pe 3.19).
Pneuma também é em grande parte sinônimo de psyche, as duas palavras freqüentemente usadas indistintamente no Novo Testamento. Ladd, contudo, sugere uma distinção entre elas: “O espírito é freqüentemente usado a respeito de Deus; a alma nunca é usada dessa forma. Isto sugere que pneuma representa o homem em seu lado voltado para Deus, enquanto que psyche representa o homem em seu lado humano.” [48] Em geral, eu concordo com isto, mas há duas exceções. Por exemplo, a psyche é descrita algumas vezes como louvando e magnificando o Senhor (Lc 1.46), e Tiago nos diz a respeito da palavra em nós implantada que é capaz de salvar as nossas almas (psychas, Tg 1.21). Pneuma, está claro, pode ser usado como designativo da pessoa total; como psyche, ele descreve um aspecto do homem em sua totalidade.
A próxima palavra que olharemos é kardia, a palavra do Novo Testamento equivalente a lebh e lebhabh, usualmente traduzida como “coração”. Arndt-Gingrich dá o seguinte sentido principal da palavra: “a sede da vida física, espiritual e mental”. Ele é também descrito como o centro e a fonte da totalidade da vida mais interior do homem, com seu pensamento, sentimento e vontade. O coração é também dito ser o lugar de morada do Espírito Santo.
Johannes Behm semelhantemente descreve o coração no Novo Testamento como o principal órgão da vida psíquica e espiritual, o lugar no ser humano no qual Deus testemunha de si mesmo. O coração é o centro da vida mais interior de uma pessoa: de seus sentimentos, entendimento, e vontade. O coração significa a totalidade do ser interior do homem, a parte mais profunda dele; ele é sinônimo de ego, a pessoa. Kardia é supremamente o centro no homem para o qual Deus se volta, no qual a vida religiosa está enraizada, e que determina a conduta moral. [49]
Anteriormente já observamos que lebh no Antigo Testamento é também usado para indicar o coração como a sede do pecado, a sede da renovação espiritual e o lugar da fé. Isto também é verdade de kardia. Além disso, podemos observar que as outras virtudes cristãs são descritas como kardia. O amor é associado com o coração em 2 Tessalonicenses 3.5 e 1 Pedro 1.22. A obediência é ligada ao coração em Romanos 6.17 e em Colossenses 3.22. O perdão é associado ao coração em Mateus 18.35. O coração é ligado com humildade em Mateus 11.29, e é descrito como o assento da pureza em Mateus 5.8 e Tiago 4.8. A gratidão é associada com o coração em Colossenses 3.16, e a paz é dita guardar o coração em Filipenses 4.7.
Em uma seção de sua Dogmatics na qual ele trata com “o homem como alma e corpo”, Karl Barth, falando do coração no Novo e no Antigo Testamentos, diz:
Se fôssemos verdadeiros com os textos bíblicos deveríamos dizer do coração que ele é in nuce o homem total em si mesmo, e, portanto, não somente o locus de sua atividade mas de sua essência... Assim, o coração não é meramente uma realidade mas a realidade do homem, ambos – da totalidade da alma e da totalidade do corpo. [50]
Assim, novamente aqui vemos a ênfase bíblica na totalidade do homem. Kardia significa a pessoa total em sua essência mais interior. No coração a atitude básica do homem para com Deus é determinada, seja de fé ou de incredulidade, de obediência ou de rebelião.
Embora estritamente falando o Antigo Testamento não tenha uma palavra para corpo, ele usa basar para descrever o aspecto físico do homem, sua carne. No Novo Testamento há duas palavras para corpo: sarx e soma. Arndt-Gringrich lista oito significados para sarx, usualmente traduzidos como “carne”; entre outros significados estão: “corpo”, “um ser humano”, “natureza humana”, “limitação física”, “o lado exterior da vida”, e “o instrumento desejoso do pecado” (particularmente nos escritos de Paulo).
Sarx no Novo Testamento, então possui dois significados principais: (1) o aspecto externo, físico da existência do homem — neste sentido ele pode ser usado do homem como um todo; e (2) carne como a tendência dentro do homem caído para desobedecer a Deus em todas as áreas da vida. [51] Neste segundo sentido, encontrado principalmente nas epístolas de Paulo, não devemos restringir o sentido de sarx como se referindo somente ao que usualmente chamamos de “pecados da carne” (pecados do corpo); ao contrário, deveríamos entendê-lo como referindo-se aos pecados cometidos pela pessoa total. Na lista das “obras da carne” (ta erga tes sarkos) encontrada em Gálatas 5.19-21, onde cinco de quinze dizem respeito aos pecados do corpo; o restante diz respeito ao que chamamos de “pecados do espírito”— como ódio, discórdia, ciúme, e que tais. Assim, mesmo quando a palavra sarks é usada neste segundo sentido, ela diz respeito à pessoa total, e não apenas a uma parte dela.
Agora nos voltamos para a palavra soma, usualmente traduzida como “corpo”. Arndt-Gingrich dá cinco significados, incluindo os seguintes: “o corpo vivo”, “o corpo da ressurreição”, e “a comunidade cristã ou igreja”. Clarence B. Bass, num artigo sobre o corpo nas Escrituras, também lista cinco definições da palavra soma: “a pessoa total como uma entidade diante de Deus”, “o locus do espiritual no homem”, “o homem total como destinado para a membresia no reino de Deus”, “o veículo para a ressurreição”, e “o lugar do teste espiritual em termos do qual o julgamento acontecerá”. [52] Ele chega à seguinte conclusão:
Assim, está claro que o corpo é usado para representar a totalidade do homem, e milita contra qualquer ideia da visão bíblica do homem como existindo à parte da manifestação corporal, a menos que seja durante o estado intermediário [que é, o estado entre a morte e a ressurreição]. [53]
Podemos resumir nossa discussão das palavras bíblicas usadas para descrever os vários aspectos do homem, como segue: o homem deve ser entendido como um ser unitário. Ele tem um lado físico e um lado mental ou espiritual, mas não devemos separar esses dois. A pessoa humana deve ser entendida como uma alma corporificada ou um corpo “espiritualizado” (“animado”). [54] A pessoa humana deve ser vista em sua totalidade, não como uma composição de diferentes “partes”. Este é o ensino claro de ambos os Testamentos. [55]
Notas:
[39] William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago: Univsersity of Chicago Press, 1957).
[40] “Psyche”, TDNT, 9:639.
[41] Ibid., 642.
[42] Ibid., 644.
[43] Ibid., 648.
[44] Ibid., 654.
[45] “Pneuma”, TDNT, 6:435.
[46] Ladd, A Theology of the New Testament, 461-63.
[47] The Pauline View of Man, 135.
[48] New Testament Theology, 459.
[49] “Kardia”, TDNT, 3:611-12.
[50] Church Dogmatics (Edinburgh: T. & T. Clark, 1960), III/2, 436.
[51] Um estudo mais antigo, embora competente, a respeito do significado de sarx nos escritos de Paulo é o de Wm. P. Dickson, St. Paul’s Use of the Terms Flesh and Spirit (Glasgow: Maclehose, 1883). Um estudo mais recente é o de J. A. Robinson, The Body (1952).
[52] “Body, ISBE, 1:529.
[53] Ibid.
[54] Barth, Church Dogmatics, III/2, 350.
[55] Em acréscimo aos estudos da visão bíblica sobre a pessoa total referida acima, podemos enumerar os seguintes: G. C. Berkouwer, “The Whole Man”, em Man, 194-233; C. A. Van Peursen, Body, Soul, Spirit: A Survey of the Body-Mind Problem, (London: Oxford University Press, 1966); H. Ridderbos, Paul: Na Outline of His Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), 64-68, 114-26; Rudolf Bultmann, Theology of the New Testament, vol. 1 (New York: Scribner, 1951), 190-227; Werner G. Kümmel, Man in the New Testament (London: Epworth, 1963); Robert Jewett, Paul’s Anthropological Terms (Leiden: E. J. Brill, 1971).
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HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. Tradução de Heber Carlos Campos. 2ª Ed. Cultura Cristã: São Paulo, 2010. p. 235-238.
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