terça-feira, 18 de outubro de 2016

A AFIRMAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE DEUS NA CONSTITUIÇÃO DO SER HUMANO


Há na humanidade uma ideia generalizada a respeita da existência da Divindade, de um Ser superior do qual nenhum dos seres humanos pode fugir devido ao modo como o Criador os fez. Na Teologia, essas ideias são chamada de "ideias inatas", porque todos os seres humanos nascem com elas.

Ideias inatas sobre a existência de Deus

A noção da Divindade é praticamente uma crença de toda a raça humana no seu estado natural. Todos os seres humanos que vêm ao mundo nascem com a ideia de um Ser superior, mesmo que não saibam formular corretamente conceitos sobre ele. A alma de cada ser humano tem implantadas em si certas noções que são comuns a todas as raças, por mais distantes e isoladas que estejam umas das outras e aquilo que chamamos de "civilização cristã", ou "mundo ocidental". Quando Deus criou o homem, ele estampou nele a sua imagem. Nem mesmo a queda do Éden conseguiu destruir completamente o que Deus havia colocado no coração dos seres humanos, pois as suas leis morais básicas estão implantadas dentro deles, e os homens serão julgados por elas, segundo o ensinamento das Santas Escrituras (ver Rm 2.11-16).

A perspectiva da existência de Deus pode ser ilustrada pela referência à criação do homem (Gn 2.7-8). Esses dois versículos nos dizem algo muito importante a respeito da experiência humana com Deus. O primeiro homem, Adão, tinha uma consciência absolutamente clara da existência de Deus, porque este se lhe revelou proposicionalmente, isto é, em palavras, conversando com ele no lugar onde fora criado e colocado. Desde o início de sua existência, Adão possuía uma consciência de Deus. Esta era inescapável em Adão, por causa da constituição da sua natureza. Ele não podia fugir da presença de Deus e nem relacionar-se no Éden sem a forte noção da presença divina.

Mesmo depois da Queda, a ideia da consciência de Deus não desapareceu do ser humano. Com a Queda houve a quebra do relacionamento espiritual; o homem ficou separado de Deus, morto espiritualmente, mas a consciência do divino permaneceu dentro dele.

Calvino usa duas expressões elucidativas a respeito da noção de Deus que até os pagãos possuem. Ele atribui essas noções inatas a duas propriedades naturais no homem, as quais a Queda não destruiu porque Deus as plantou de modo indelével no coração humano: semen religionis e sensus divinitatis.

a. Semen Religionis [1] 
A semente da religião foi plantada no coração do homem quando Deus o criou. Nenhum homem é ateu por natureza. Nenhum homem vem ao mundo sem essa semente da religião. Calvino disse: "como a experiência mostra, Deus plantou uma semente de religião em todos os homens". [2]

Todos têm uma religião natural como resultado da noção inata de Deus com a qual nasceram. Porém, essa religião não é suficiente para as necessidades do homem no estado de pecado em que se encontra. Nesse tipo de religião o homem tem medo, porque conhece somente a justiça de Deus. Ele não tem noção alguma de sua misericórdia. Daí a ideia de oferecer sacrifícios, em todas as religiões de povos primitivos para aplacar a ira dos deuses. A religião natural inspira medo, não esperança e confiança.

A religião natural mostra que há um Deus com atributos como poder, divindade e justiça, como é ensinado em Romanos 1. Esses são atributos que  Deus manifesta na natureza, mas sua misericórdia, o seu amor, sua graça, etc., são expressões da sua vontade, e ele as manifesta quando quer. Embora eles sejam parte da essência de Deus, a sua manifestação depende do exercício da sua vontade. Isso não faz parte das ideias inatas de Deus que a religião natural traz.

b. Sensus Divintatis [3]
A semente da religião existe porque o ser humano nasce com a noção de que existe um Ser divino por trás de tudo o que ele vê e sente. A ideia de Deus está plantada na alma humana, mesmo que, por causa da perversão do coração humano, não haja um relacionamento de harmonia com o Deus verdadeiro.

Calvino disse que essa "consciência de divindade" foi implantada por Deus em todos os homens "para evitar que alguém se refugie numa pretensa ignorância".[4] Ele continua: "Os homens de juízo sadio sempre estarão certos de que o senso de divindade, que jamais pode ser apagado, está gravado na mente dos homens".[5] Concluindo sua ideia sobre o sensus divintatis, Calvino diz:
Portanto, visto que desde o começo do mundo não tem havido nenhuma religião, nenhuma cidade, em resumo, nenhuma família que pudesse viver sem religião, nisso repousa a tácita confissão de que o sensus divintatis está inscrito nos corações de todos os homens.[6]
Em Atos 17, o episódio do Areópago de Atenas mostra que todos os homens, sem terem a luz da revelação especial, possuem o senso de que há um ser maior do que eles, ao qual adoram, mesmo que essa semente da religião e o senso de divindade sejam prejudicados devido ao efeito do pecado. Por causa da corrupção do coração, eles perderam os dados preciosos a respeito de Deus, mas ainda possuem a consciência da divindade e a expressam nos cultos que lhe prestam, mesmo sem conhecê-lo devidamente.

Romanos 1.18-22 mostra o semen religionis e o sensus divintatis de maneira inequívoca. Nessa passagem, Paulo afirma claramente que os homens "detêm a verdade de Deus [e a trocam] pela injustiça" (v.18). A palavra grega para "detêm" (katechêo) é mais bem traduzida por suprimir. Ela dá a ideia de que o homem possui alguma coisa, mas algo leva a lutar contra o que é natural nele - o conhecimento de Deus. Os homens caídos são culpados por suprimirem a verdade. O que Paulo quis dizer com isso? Ele está afirmando que a verdade suprimida é o conhecimento de Deus que lhes foi manifesto (v.19) Deus se lhes revelou, mas eles não quiseram a verdade de Deus, preferindo a injustiça (ou a mentira) deles próprios. É esse conhecimento de Deus, que é a consciência de sua existência, o homem procura negar. Todo homem possui essa consciência de Deus, muito embora lutam desesperadamente para negá-la.

Ela transmite a ideia de que o homem possui alguma coisa, mas algo o leva a lutar contra o que é natural nele - o conhecimento de Deus. A depravação humana conduz o homem à supressão daquilo que é próprio dele: a consciência da existência de Deus, que o leva a ser um ser religioso. Por mais que o homem lute, esse conhecimento de Deus não pode ser apagado. Essa noção da existência de Deus é inescapável nele. Todavia, o homem é condenado porque tenta negar o que não pode ser negado: a existência de Deus. A corrupção do seu coração o leva a inverter a ordem das coisas, mas não apaga nele a consciência da divindade e a semente da religião. O homem não pode escapar da consciência de Deus. Ele só suprime o conhecimento verdadeiro de Deus, ma não foge da consciência de Deus.

Todos os homens vivem num ambiente que revela a existência de Deus, e não podem escapar dessa presença de Deus que lhes impacta o ser. Eles podem até suprimir o conhecimento verdadeiro de Deus e podem batalhar contra a ideia do Deus verdadeiro, mas não podem fugir da consciência da sua existência.

Portanto, com o estudo do semen religionis e do sensus divintatis não é difícil entender porque há certas ideias inatas a respeito da Divindade. Elas são naturais num ser criado. Por definição, um ser criado não pode funcionar como se não tivesse sido criado. Portanto, a existência de Deus, mesmo que não possamos prová-la, deve ser pressuposta e assumida.

Essa ideia inata da existência de Deus é o resultado da constituição da natureza humana, daquilo que Deus nela plantou. Essa ideia é inata como inatas são as ideias de espaço e tempo na mente humana. A intensidade dessa ideia varia de acordo com as raças e civilizações, mas ela é universal.

Os atributos de Deus, que não podem ser percebidos pelos sentidos humanos, são claramente vistos pela mente humana na revelação da natureza.

O ensino de Paulo a respeito da ideia inata de Deus é confirmado e ilustrado no pensamento monoteísta de filósofos pagãos:
O monoteísmo dos pagãos prova sobre as ideias inatas a respeito de Deus
Mesmo depois da Queda, o monoteísmo não desapareceu da religião humana. O monoteísmo não propriedade exclusiva da religião revelada, que é o judaísmo e seu desdobramento, o cristianismo. Ela existe mesmo entre pagãos. Portanto, a existência do monoteísmo na alma dos homens é também uma evidência de que há ideias inatas sobre Deus.

b.1. Os pagãos mais antigos eram monoteístas
Muitos dos filósofos pagãos foram "teístas", monoteístas e reconheciam apenas um ser supremo. A multiplicidade de deuses em muitas culturas não indica a crença em divindades autoexistentes, mas todas elas, como divindades inferiores foram criadas por um deus maior e mais poderoso. A palavra "deuses" muitas vezes foi empregada pelos pagãos do mesmo modo como é usada na Bíblia (Jo 10.34) - para se referir a anjos, príncipes e autoridades humanas.

O monoteísmo é a religião original de todos os homens. O politeísmo, como veremos adiante, é uma corruptela do panteísmo. A natureza do homem reclama a existência de um único Deus. Apenas a pecaminosidade voluntária faz o ser humano sair dessa condição de monoteísta, um posicionamento contra o qual ele, do modo como Deus o fez, luta freneticamente. Calvino disse:
O nome de um Deus supremo tem sido universalmente reconhecido e celebrado. Porque aqueles que costumavam adorar uma multidão de deuses, onde quer que falassem de acordo com o sentido genuíno da natureza, usaram simplesmente o nome de Deus no número singular, como se estivessem contendendo com o próprio Deus.[7]
Sem citar o nome, mas referindo-se claramente a Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), diz Calvino:
Todavia não há, como diz o eminente pagão, nenhuma nação tão bárbara, nenhum povo tão selvagem que não tenha uma convicção profunda de que há um Deus. E eles, que em outros aspectos da vida parece ao menos diferir dos animais, ainda continuam retendo alguma semente de religião.[8]
Em sua obra De Legibus, I, 8, Cícero escreveu:
Não há nenhum animal, exceto o homem, que tenha qualquer noção de Deus; e entre os homens não há nenhuma tribo tão selvagem que, mesmo que não conheça que espécie de Deus deve ter, não saiba que deve haver um.[9]
Os apologistas cristãos dos primeiros séculos, Tertuliano e Clemente de Alexandria, sustentaram universalmente a posição de que a mente humana é naturalmente e por criação monoteísta.

b.2. O monoteísmo natural dos pagãos é provado por dados bíblicos
Além dos hebreus, outros povos mencionados na Bíblia dão claros indícios de seu monoteísmo. Por exemplo, com relação aos egípcios, há Agar (Gn 16.1,13) e Faraó, o rei do Egito (Gn 41.38); quanto aos filisteus, há Abimeleque, o rei desse povo (Gn 20.3-8).

A ideia de Deus não é exatamente a mesma em duas culturas ou mesmo em dua pessoas distintas de uma mesma nação. Todavia, a constituição mental delas é a mesma. Um homem pode ter um senso da justiça de Deus mais marcante do que outro, enquanto este pode ter uma noção mais aguçada do poder de Deus, ou de sua sabedoria. Isso vai depender do modo como cada um observa os fenômenos da criação que estão ao seu redor.

É importante observar que a apostasia e o ateísmo são tentativas de esconder essa ideia inata de Deus. A condição abrutecida do mundo idólatra não contradiz a existência da ideia inata de Deus. A ideia fundamental existente na mente humana pode não ser desenvolvida, ou pode ser viciada pelo pecado, mas ela continua a existir no homem mesmo depois da Queda.

O monoteísmo foi a forma original de religião; o panteísmo e politeísmo foram formas subsequentes. Segundo as Escrituras, o homem foi criado monoteísta. Seu primeiro estado foi o seu melhor estado. Ele caiu de um estado mais alto para um mais baixo no que diz respeito ao caráter e ao conhecimento.

- O primeiro estágio da corrupção do monoteísmo primitivo foi o panteísmo. Nesse modo de pensar, a unidade de Deus permanece, mas a diferença entre ele e o universo criado é negada, porque o panteísmo crê que o universo seja uma extensão de Deus. O fato de que a unidade de Deus é preservada prova que essa noção é natural à mente humana. Nesse estágio, o sol, a lua e as estrelas passaram a ser adorados como uma extensão da divindade. Tudo era Deus.

- O segundo estágio do declínio do monoteísmo primitivo foi o politeísmo. Nesse caso, a unidade ou a substância única do panteísmo foi subdividida, e as subdivisões personificadas. A personalidade de Deus perdida no panteísmo foi devolvida no politeísmo, só que numa multiplicidade de deuses. Nesse estágio, os homens começaram a fazer representações de Deus. Como os planetas, ou outros corpos celestes, eram visíveis somente durante a noite, eles inventaram imagens para representá-los. Isso produziu a adoração de imagens. Eles fizeram imagens de Júpiter, Saturno, Marte, Apolo, etc. Então, foi nesse estágio que teve início a idolatria.


Notas bibliográficas:

[1] Essa expressão é usada por Calvino em vários de seus escritos. Em seu comentário sobre 1João 1.5, Calvino afirma: "Há duas partes principais da luz que ainda permanece na natureza corrupta: primeiramente, a semente da religião que é plantada em todos os homens; em segundo lugar, a distinção entre o bem e o mal, que está gravada na consciência deles".
[2] Institutas 1.4 1.
[3] Calvino diz: "Existe dentro da mente humana, e, de fato, por instinto natural, uma consciência da divindade (Institutas, 1.3. 1).
[4] Institutas, 1.2. 1.
[5] Institutas, 1.3. 3.
[6] Institutas, 1.3. 1.
[7] Institutas, 1.10.
[8] Institutas, 1.3. 1 (itálico acrescentado).
[9] Citado por W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1971), vol. 1., 200 (ver At 17.24-28).


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CAMPOS, Heber Carlos. O ser de Deus. 3ª Ed. Cultura Cristã: São Paulo, 2012. ps. 30-36.



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