O Brasil é o país do Carnaval - esta é a realidade conhecida quase que mundialmente. Todos os anos, independentemente de crises ou dificuldades, o país pára por alguns dias e celebra essa grande festa, com grande pompa, requintes e euforia. De uma forma ou de outra, seus participantes se envolvem com os festejos, dentro de suas próprias condições ou até acima delas, tudo no empenho de não perder o tal 'reinado de Momo'.
Neste contexto já estabelecido como realidade folclórica, estamos nós cristãos como Igreja de Jesus, e muitas vezes com dificuldades para encarar o nosso posicionamento sobre esse assunto. Desconhecendo a verdade nesse particular, alguns deixam de evidenciar sua fé, e com isso dão a impressão de que o Carnaval e o Cristianismo não são incompatíveis entre si.
O texto que o leitor irá acompanhar aborda essa questão, mostrando o Carnaval nas suas origens e comemorações gerais, e apresenta um posicionamento bíblico que deve definir a conduta cristã em relação ao assunto.
Assim, inseridos no contexto da maior festa popular, como servos de Deus que somos, existe a possibilidade de viver e evidenciarmos nossa fé cristã, cumprindo assim a nossa missão de "luzeiros no mundo" (Fp 2.15).
Definições
O termo "Carnaval" não possui uma origem etimológica tão definida e clara. Os estudiosos do assunto levantam três possíveis origens para o termo: uma seria 'carnem levare', do latim 'abstenção de carne', ou do italiano 'carnevale' - 'adeus à carne' - termos esses que expressam o costume de se abster de carne no último dia que antecede a Quaresma. Outra possibilidade é que seja derivado do latim 'carnevamen' ou 'carnis levamen' - literalmente 'prazer da carne', como significando os apetites e exageros antes do período de respeito e moralidade da Quaresma. E uma outra possibilidade é que o vocábulo venha do latim 'carrus navales' - 'carros navios', uma espécie de barcos com rodas, usados em cortejos festivos.
Para todas essas etimologias encontramos defensores e opositores, mas em essência, o termo expressa o período que antecede a Quaresma, seja com jejuns e continência para alguns, ou tal como se usa o termo para designar os festejos e exageros que precedem a quarta-feira de cinzas. Aliás, esse é o sentido predominante, pois independente da real origem etimológica, "carnaval" hoje é sinônimo de festa, euforia, exagero, farra, orgia, atrapalhadas ou confusões, tal como os linguistas colocam nos dicionários.
Portanto, o nosso estudo em pauta, "carnaval" será usado para referir-se aos festejos gerais que precedem a Quaresma, festejos esses que constituem a maior festa popular, com todos os seus requintes, euforias e as mais variadas celebrações, inclusive até fora de sua data ou período costumeiros.
No Egito Antigo
Em tempos remotos, o Egito festejava suas grandes divindades, o boi Ápis e Ísis, com grandes celebrações populares. Nestas o povo participava com procissões e oferendas, músicas e danças, num misto de devoção e euforia coletivas, prestando homenagem a essas divindades tão estimadas. Especificamente na festa ao boi Ápis, os egípcios pintavam um boi branco com vários símbolos e cores, o cortejavam festivamente pelas ruas, com toda a sociedade egípcia fantasiada ou mascarada e em grande devassidão, até que finalmente no rio Nilo afogassem esse boi. E a deusa Ísis também era homenageada com folguedos populares, com pompa, devoção e euforia dos seus adoradores.
Na Grécia Antiga
O gregos foram a civilização mais intelectual do mundo antigo, não só criando e desenvolvendo uma cultura nova, como também assimilando e reformulando conceitos e costumes de outros povos. Em matéria de costumes religiosos, eles criaram e viveram em função de uma mitologia tão diversificada, que não havia nada no seu cotidiano que não fosse regido por uma divindade específica. E nessa diversidade de crenças e celebrações, algumas divindades tinham seus cultos que consistiam em festins de grande euforia popular, como no caso do culto a Dionísio, considerado filho de Júpiter. Dionísio era o deus do vinho, e em sua homenagem o povo bebia e se embriagava, saía em grandes procissões com toda sensualidade e devassidão.
No Império Romano
O Império Romano, englobando muitas nações com seus vários costumes, sintetizou muito deles em certas comemorações novas, ou apenas adaptou os mesmos para sua mentalidade ou interesses próprios. É por isso que os deuses da mitologia antiga têm nomes gregos e latinos.
A Roma antiga era cheia das mais variadas diversões para agradar a todos, e assim tinham seus muitos 'carnavais'. Deu outra forma à crença e comemorações gregas a Dionísio, transformando-o em Baco e celebrando-lhe os famosos 'bacanais'.
Em meados de dezembro realizavam-se as 'Saturnais', que eram festividades a Saturno, que segundo a crença geral era o deus expulso do Olimpo, tornando-se o doador da alegria, em contraposição à miséria e pobreza, tão comuns na sociedade daquele tempo. Em fevereiro celebravam as 'lupercais', que eram cortejos dos sacerdotes do deus Pã, chamados 'lupercos', que despidos e sujos de sangue agitavam as multidões. Em março comemoravam com grande algazarra a festa ao deus Baco, os conhecidos 'bacanais' romanos, que possivelmente eram a maior celebração popular antiga, em que seus participantes embriagados cometiam todos os devaneios possíveis. Nessas festas os participantes, tais como os indus, usavam máscaras e invocavam seus antepassados mortos e lhes celebravam homenagens. Em todos esses festins o Império Romano praticamente parava, para que o povo ficasse por conta das comemorações. As diversas classes sociais se misturavam desfazendo-se as desigualdades, a ordem pública era quase abolida, escolas, tribunais e repartições públicas do governo fechavam suas portas, a imoralidade e a libertinagem ficavam liberadas. E como usava-se máscaras e fantasias, era difícil identificar os participantes em seus devaneios!
Nesta celebração abolia-se a decência, e o povo extravasava suas euforias sufocadas pela moral de outras épocas do ano, escarnecia-se das realidades gerais do seu cotidiano, e numa total liberdade de expressão física e verbal, sem restrição alguma, dramatizava e até ridicularizava tudo que era considerado motivo para farras. Acredita-se que a origem dos carros alegóricos seja a maneira de ridicularizar os carros dos generais romanos e suas entradas triunfais após as grandes vitórias militares...
Como Roma influenciou tantos povos e culturas, o seu Carnaval foi exportado para grande parte do mundo, sendo celebrado em cada lugar com os estilos próprios dos povos que o incorporaram ao seu folclore local.
E no decorrer da história, mesmo com o advento do Cristianismo, o Carnaval não foi abolido das celebrações anuais. Autoridades eclesiásticas de grande expressão como Tertuliano, Cipriano e Clemente de Roma se posicionaram contra tal costume, mas mesmo assim o Carnaval continuou e chegou inclusive a ser incentivado e patrocinado pelo Papa Paulo II, pois em meados do século XV durante seu pontificado, perto do seu palácio, na Via Lata, se celebrava os festejos carnavalescos com máscaras, corridas de cavalos, carros alegóricos e batalha de ovos, farinha e água entre os participantes!
O carnaval brasileiro
O Carnaval chegou ao Brasil com os colonizadores. No início estava vinculado mais à classe alta da nobreza e, com o tempo, foi também celebrado por outras classes sociais; tudo isso nas regiões mais influentes do período colonial, como a Bahia e principalmente Rio de Janeiro.
Segundo alguns historiadores, a primeira manifestação carnavalesca no Brasil se deu em 1641, no Rio de Janeiro, quando para comemorar a restauração do trono português, com muita pompa membros do governo carioca da época fizeram grande cortejo em saudação a D. João IV. Já nesse tempo os portugueses tinham seu festim eufórico, chamado 'entrudo', que consistia da entrada de cortejos pelas ruas e avenidas, com músicas, danças e fantasias, com o envolvimento dos que desejassem participar. Em tempos posteriores, mo século XIX, segundo se tem notícia, o próprio recatado D. Pedro II, na Quinta da Boa Vista, (Rio de Janeiro), participava dos festejos, atirando água aos membros da nobreza, pois era costume nestes festins, o jogar água, talos de hortaliças, farinha e ovos entre os foliões.
Em 1840 foi realizado o primeiro baile com máscaras, isso no Hotel Itália no Rio, por iniciativa da italiana sua proprietária. Alguns anos depois, em 1948, o sapateiro português José Nogueira de Azevedo Prates - (o Zé Pereira), saiu no cortejo tocando bumbo, dando origem assim aos ritmos carnavalescos, que nesse tempo já era de grande participação popular, onde as diversas classes sociais se misturavam na festa, sendo que escravos vestiam de ricos para ridicularizar seus patrões! Com o tempo esses cortejos foram sendo organizados em grupos, surgindo assim, em 1866, os 'cordões' ou as sociedades carnavalescas. Em 1885 já havia desfiles com carros alegóricos.
Na Bahia, por esse tempo, o Carnaval já era predominante, pois surgia em 1885, os 'afoxés', grupos ou sociedades carnavalescos formados pelos escravos. Essas sociedades sempre foram muito influentes no carnaval baiano, e ainda hoje têm seus blocos remanescentes, como 'os filhos de Gandhi' e o 'Olodum', internacionalmente conhecidos.
No Rio de Janeiro, em 1889, os blocos carnavalescos foram organizados e até licenciados pelas autoridades locais para as suas apresentações, tornando-se assim em desfile oficial, com carros alegóricos e muitas fantasias. Pouco tempo depois, em 1892, chegavam os confetes importados; depois as serpentinas substituíram as rosas que eram jogadas nos foliões... Mais tarde, em 1906, chegavam da França os 'lanças-perfume', proibidos futuramente na década de sessenta, por serem usados como entorpecente. Músicas eram compostas para cada Carnaval, com temas variados: Assim a renomada abolicionista Chiquinha Gonzaga compôs em 1899, o "Ô abre alas"; em 1917 o primeiro samba, o "Pelo telefone" de Donga. Em 1919 já havia concursos de músicas carnavalescas no Rio de Janeiro, algo que tanto floresceu que o prefeito Pedro Ernesto o oficializou em 1932.
A primeira escola de samba nasceu no Rio, no Bairro do Estácio, em 1928. Em 1933, o jornal carioca 'A Noite' instituiu o "Rei Momo", e o primeiro foi o compositor Silvio Caldas. Em 1935 ocorreu a legalização do desfile das escolas de samba, e no ano seguinte já havia concurso de fantasias. O primeiro grande desfile de fantasias aconteceu no Teatro Municipal do Rio, em 1937. Na década de sessenta surgiram as bandas, e mais recentemente os trios elétricos...
Em linhas gerais esse é o histórico do Carnaval brasileiro, sendo hoje uma das maiores festas do mundo. Gastos enormes são feitos pelo poder público para essa festividade, desde enfeites decorativos, até prevenção ou combate à doenças ou tragédias vinculadas ao evento. Sem se considerar crises ou fatores adversos, anualmente o país pára por alguns dias e celebra o Carnaval, que a cada ano se torna mais requintado, sensual e profano.
Sendo assim, o Carnaval é comemoração antiga, oriundas de várias culturas remotas, celebrado com objetivos diversos, sejam religiosos e pagãos, ou simples folclore de um povo que faz sua diversão nacional, conhecida como 'reinado de Momo'. Para fins de esclarecimentos, "Momo" ou 'Sarcasmo', segundo a mitologia grega, era um deus, filho do deus Sono e da deusa Noite, que no Olimpo criticou as maravilhas feitas pelos deuses Netuno, Vulcano e Minerva, o que provocou sua expulsão do Olimpo, vindo então para o reino dos homens na terra, sorrindo como se nada lhe tivesse acontecido e, perdido nesse contexto, com seus olhos escondidos por uma máscara, passou a observar todas as ações divinas e humanas, e nelas encontrando motivos para se divertir e fazer suas zombarias...
Portanto, o Carnaval é mesmo o reinado de Moma, e mesmo que não seja comemorado especificamente para esse suposto deus decaído, tal festa é a real expressão desse conceito pagão tão antigo, na qual predomina toda espécie de escárnio, zombaria ou ridicularizações bizarras, exatamente como o comportamento de Momo, considerado como 'Rei do Carnaval'.
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FONSÊCA, Salvador Moisés. Respostas da Fé Cristã: O posicionamento cristão acerca de costumes do mundo atual. CEIBEL: Patrocínio, 2003. pag. 95-104.
Obs.: Esse texto teve pequenas alterações sem mudar ou distorcer a visão do autor sendo honesto à sua ideia. Também é justo lembrar que o estudo exposto no livro "Respostas da Fé Cristã: O posicionamento cristão acerca de costumes do mundo atual" tem mais conteúdo acerca do assunto e é mais completo. Se quiserem ter acesso ao material (livro) entrem em contato com o CEIBEL pelo telefax: (34) 3831-2059; ou pelo e-mail: ceibel@wbrnet.com.br
O Rev. Salvador Moisés da Fonsêca é bacharel em Teologia, ministro presbiteriano e professor no Instituto Bíblico Eduardo Lane (IBEL).