Poucos assuntos têm gerado mais acalorado debate entre os cristãos do que aquele sobre a moralidade do consumo de álcool. Nos Estados Unidos, a disputa tem gerado respostas que vão desde movimentos educacionais regionais de moderação até emendas federais à Constituição.
Certamente há evidências do abuso descontrolado de bebidas alcoólicas hoje; quase ninguém negaria. Além disso, a Bíblia condena claramente todas as formas de abuso de álcool, seja através de ordens expressas, seja por exemplos notórios. Contudo a questão ética que está perante nós é: A Bíblia permite um consumo moderado de bebida alcoólica? A questão fundamental é de ordem ética, não cultural ou geográfica; ela requer uma resposta com base bíblica, não emocional.
Três pontos de vista
Entre os evangélicos, as abordagens fundamentais a respeito do álcool podem ser destiladas (sem trocadilhos) em três pontos de vista básicos: (1) Os proibidores, que não toleram de forma alguma o consumo de bebida alcoólica. Os que aderem a esta posição não encontram nenhuma autorização da Escritura para o consumo de álcool, mesmo no período bíblico; (2) Os abstêmios, que desencorajam o uso do álcool em nosso contexto moderno, embora conheçam que ele era usado no período bíblico. Eles apontam a diferença cultural moderna como justificativa para sua distinção: a difusão do alcoolismo (um problema social contemporâneo), bebidas com maior teor alcoólico (desconhecidas nos tempos bíblicos), e a intensificação dos perigos em uma sociedade tecnológica (e.g.: bebida e direção); (3) Os moderados, que defendem uma permissão para o consumo moderado de bebidas alcoólicas. Essa posição, ao reconhecer, lamentar, e condenar todas as formas de abuso e dependência alcoólica, argumenta que a Escritura permite o desfrute de bebidas alcoólicas com discernimento e moderação.
A importância da questão freqüentemente, a argumentação contra o consumo de bebidas alcoólicas de forma inadvertida e negativa afeta certos aspectos da fé cristã. Ela pode solapar a autoridade da Escritura (através da condenação universal de algo que a Bíblia permite, a autoridade da própria Bíblia é diminuída no pensamento cristão). Isso pode distorcer a doutrina de Cristo (pois a censura universal de algo que o próprio Jesus praticou detrata Sua santidade). E isto afeta negativamente nossa defesa da fé (pois ao negar algo que a Escritura permite tornamos nosso testemunho inconsistente).
Minha abordagem deste tema envolve três pressuposições: (1) A Bíblia é a inerrante Palavra de Deus; (2) portanto, a Bíblia é o padrão determinador e final de toda questão ética; e (3) a Bíblia condena todas as formas de abuso e dependência alcoólica. O ponto de vista moderado de forma alguma compromete qualquer destas três considerações fundamentais.
O vinho na Bíblia
Sem dúvida, o ponto de partida de qualquer discussão racional do assunto deve estar na natureza do vinho na Escritura. A posição moderada diz que o vinho permitido para consumo e uso prudente pelo povo de Deus na Bíblia era de qualidade fermentada, uma bebida de conteúdo alcoólico. Considere a evidência para esta afirmação:
1. Consenso léxico: Os principais léxicos do Antigo e Novo Testamentos e os dicionários etimológicos afirmam que os principais termos para vinho se referem a uma bebida fermentada, um “vinho”, não “suco de uva”. Os termos mais importantes para o debate empregados na Escritura são yayin e shekar (hebraico) e oinos (grego).
2. Consenso da tradução: A maioria das traduções da Bíblia em inglês [e português] traz essas palavras com equivalentes que significam bebidas alcoólicas, ao invés de termos como “suco” ou “suco de uva”, e assim por diante. As traduções incluem “vinho”, “licor”, “bebida” e “bebida forte”.
3. Relação léxica: Uma dos principais termos em nosso debate é shekar (“bebida forte”). Essa é uma forma substantiva do verbo shakar, que significa “embebedar-se”. Essa é uma evidência da capacidade inebriante da shekar.
4. Contexto de uso: Muitos dos versículos que condenam a bebedeira fazem referência a bebidas como yayin, shekar, e oinos. Além disso, em várias passagens, diz-se que yayin “alegra o coração”. Isto seguramente faz referência ao efeito da bebida alcoólica, quando usada moderadamente.
5. Referência descritiva: Em certas passagens na Bíblia o envelhecimento do líquido extraído da uva é especificamente mencionado (Is 25.6; Lc 5.39). O envelhecimento é um fator essencial para que o vinho seja alcoólico.
6. Discernimento exigido: Em algumas ocasiões, cristãos “fortes” são instruídos a abandonar o uso do vinho (Rm. 14:21), quando houver uma séria probabilidade de “fazer tropeçar” (Rm. 14:15) um “irmão fraco” (Rm. 14:1; 15:1). Isto certamente indica o abandono provisório de uma bebida alcoólica, ao invés do suco de uva.
7. Governo eclesiástico: Requer-se que os oficiais da igreja usem vinho em moderação (1Tm. 3:8; Tito 2:3), indicando sua qualidade fermentada e capacidade inebriante.
8. Silêncio bíblico: É interessante notar que não há nenhuma distinção bíblica para vinhos “sãos”. A Escritura não tem uma só recomendação de “vinho novo” (suco fresco de uva) que sobreponha ou substitua o “vinho velho” (bebida fermentada).
A Escritura não tem qualquer recomendação de vinho diluído em lugar do vinho puro (ela nem mesmo elogia o vinho misturado, Is 1.22). A Escritura não traz qualquer encorajamento a se evitar a fermentação, que ocorre naturalmente. Existem evidências de que o vinho era intencionalmente manejado com o fim de acelerar o processo de fermentação (Is 25.6; Jr 48.11).
Uso do vinho na Bíblia
Tendo demonstrado a qualidade fermentada (e conseqüentemente o potencial inebriante) do vinho da Bíblia, irei agora separar algumas evidências bíblicas de seu uso correto.
1. Exemplo prudente: Em Gn 14.18 Melquisedeque deu yayin a Abraão em um contexto correto. Não há nenhuma evidência de qualquer desaprovação divina a este episódio. (Ver também Ne 5.16-19).
2. Uso na adoração: A Escritura ensina que tanto yayin (Ex 29.38ss) como shekar (Nm 28.7) foram usados como oferenda a Deus. Isso é importante por duas razões: (1) essas bebidas (alcoólicas) haviam sido produzidas para adoração, e (2) elas eram oferendas aceitáveis a Deus. Se bebidas alcoólicas fossem impróprias para o consumo humano, por que seriam aceitáveis no culto divino?
3. Benção positiva: A lei de Deus permitia que yayin e shekar fossem adquiridos com a função de alegrar-se e para serem bebidos perante o Senhor. “Esse dinheiro, dá-lo-ás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, ou ovelhas, ou vinho [yayin] ou bebida forte [shekar], ou qualquer coisa que te pedir a tua alma; come-o ali perante o Senhor, teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa” (Dt 14.26). De fato, o salmista atribui a Deus a produção de yayin, o qual alegra o coração do homem (Sl 104.14-15). Certamente a provisão de Deus tem em vista um emprego justo da bebida alcoólica. Além disso, a Escritura fala da satisfação da vida em termos de comer do pão e beber do yayin com alegria (Ec 9.7).
4. Simbolismo espiritual: O rico simbolismo da revelação da redenção de Deus realça o uso de bebidas fermentadas. As bênçãos da salvação são comparadas à livre provisão de yayin: “Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas; e vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite” (Is 55.1). As bênçãos do reino são simbolizadas pela provisão abundante de yayin: “Eis que vêm dias, diz o Senhor, em que o que lavra segue logo ao que ceifa, e o que pisa as uvas, ao que lança a semente; os montes destilarão mosto, e todos os outeiros se derreterão. Mudarei a sorte do meu povo de Israel [...] plantarão vinhas e beberão o seu vinho” (Am 9.13-14). Em outra parte, lemos: “O Senhor dos Exércitos dará neste monte a todos os povos um banquete de coisas gordurosas, uma festa com vinhos velhos, pratos gordurosos com tutanos e vinhos velhos bem clarificados” (Is. 25:6). Claramente, vinho — incluindo o vinho meticulosamente envelhecido — é visto como um símbolo das bênçãos de Deus.
5. Testemunho de Cristo: É interessante perceber que nosso Senhor Jesus milagrosamente “fabricou” uma quantidade abundante (João 2:6) de vinho [yayin] para uma festa de casamento. Esse vinho foi considerado “bom” pelo mestre-sala (Jo 2.10) — e os homens preferiam o “vinho velho” [i.e., antigo, fermentado] porque ele era bom (Lc 5.39). Tendo “fabricado” vinho em Seu primeiro milagre, não é surpresa saber que o Senhor o bebeu publicamente. Isto fazia uma distinção clara entre Ele e o asceta João Batista: “Pois veio João Batista, não comendo pão, nem bebendo vinho, e dizeis: Tem demônio! Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo, e dizeis: Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!” (Lc 7.33-34).
6. Ausência de proibição: Em lugar algum a Escritura dá uma ordem universal como: “Não bebam vinho de modo algum”. De fato, os grupos seletos que abandonam o vinho são dignos de menção por agirem de forma diferente ao costume dos tempos bíblicos, como, por exemplo, os Nazireus (Nm 6.2-6) e João Batista (Lc 1.15). Outros são proibidos de ingerir vinho somente durante o exercício formal de seus deveres específicos, a exemplo dos sacerdotes (Lv 10.8-11) e reis (Pv 31.4-5). Todas as proibições quanto ao consumo de vinho envolvem proibições ao abuso ou consumo sem moderação: Não vos embriagueis com vinho (Ef 5.18). Não esteja entre os bebedores de vinho (PV. 23:20). Não seja inclinado a muito vinho (1 Tm 3.8; Tt 2.3). Não se demore em beber vinho (Pv 23:30).
Conclusão
Num tempo em que tudo é dito e feito, devemos distinguir o uso do vinho de seu abuso. Algumas vezes na Bíblia comer como um glutão é posto em paralelo com beber vinho de forma imoderada (Dt 21.20; Pv 23.21). Mas o alimento não é universalmente proibido! Algumas vezes na Escritura a perversão sexual é posta em paralelo com a embriaguez (Rm 13.13; 1 Pe 4.3). Mas nem todas as formas de atividade sexual são proibidas! A riqueza freqüentemente se transforma num laço para o pecador (1 Tm 6.9-11), mas a Escritura não desencoraja totalmente sua aquisição (Jó 42.10-17)! Deus pretende que cada uma destas vertentes da vida seja uma benção para o homem, quando usadas de acordo com Sua justa Lei. Pareceria suficientemente claro, então, que as Escrituras permitissem o consumo moderado de bebidas alcoólicas. A Bíblia não hesita em recomendar o vinho, nem se constrange em retratar seu consumo entre os justos dos tempos bíblicos. O vinho é dado aos santos como uma benção e alegria (Dt 14.26; Sl; 104.14-15), ainda que para o imoderado e perverso ele possa vir a ser escárnio e maldição (Pv 20.1; 23.29-35).
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GENTRY JR, Kenneth L. Tradução de: Márcio Santana Sobrinho. 17 de dezembro de 2008. Aracaju, SE.