sábado, 27 de maio de 2017

MORTE E GLÓRIA DE JOÃO CALVINO



Na véspera do Natal de 1559, quando pregava na Igreja de São Pedro, abarrotada de gente, Calvino teve de forçar a voz. No dia seguinte, atacou-o uma tosse violenta e começou a escarrar sangue. O médico diagnosticou-lhe uma doença contra a qual ainda não existia nenhuma arma: a tuberculose. O enfermo tinha apenas cinqüenta anos, e o seu caso não teria sido desesperado se o seu organismo, atacado desde há muito tempo por muitos inimigos, desgastados pelo trabalho e pelas preocupações, não fosse na realidade, o de um velho precoce - o velho cuja máscara trazia. Despertados pelo novo abalo, todos os males que já lhe eram familiares lançaram-se ao ataque: pulmões, rins, intestinos, encéfalo e até os braços e as pernas. Dentro em breve, não houve uma única parte desse organismo que não fosse motivo e foco de dores terríveis.

Calvino suportaria essa provação durante cinco anos, com uma coragem física e uma firmeza admiráveis. Torturado pelas cólicas, pela febre e pela gota, nem por isso deixou de dar prosseguimento aos seus trabalhos, à sua correspondência, aos seus livros e mesmo à sua pregação, que no entanto lhe exigia um esforço sobre-humano. Nos dias em que não podia manter-se em pé, pregava sentado, e, se não conseguia andar, dois homens o levavam à igreja numa cadeira. Por vezes, as dores eram tão fortes que o ouviam murmurar, como numa prece a pedir a libertação: "Até quando, Senhor, até quando?"

Perante a morte que via aproximar-se, mostrou-se o que sempre fora: lúcido, firme e reservado. Nem uma só vez deixou transparecer temor ou fraqueza. Segundo um plano traçado com a sua lógica costumeira, fez o seu testamento e recebeu, uns após outros, os corpos constituídos da cidade, desde o Pequeno Conselho até os pastores. A estes, fez um longo e minucioso discurso, em que resumiu com fórmulas incisivas toda a sua obra, nesse tom de sincera humildade e tranqüilo orgulho que fazia parte do seu modo de ser. Convidou os seus colegas a mostrar-se firmes e vigilantes para com essa "nação perversa e má" que lhes estava confiada, e concluiu afirmando-lhes que não tivera outro desígnio sobre a terra senão ser-vir a glória de Deus. Parecia ter ditado ali o seu testamento espiritual.

No entanto, a morte concedeu-lhe um novo adiamento. Farel teve tempo de vir vê-lo pela última vez. E ele próprio, o moribundo - o seu aspecto era já o de um cadáver -, sabendo que, de acordo com a legislação eclesiástica por ele estabelecida, a reunião das "censuras" trimestrais recaía no dia 19 de maio, ordenou que o levassem até lá para participar pela última vez dessa fraternal acusação de culpas. Humildemente, foi o primeiro a sub­meter-se à censura e a deixar que lhe referissem os seus defeitos: Ira, teimosia, crueldade e orgulho". Depois, com a voz ofegante, cortada sem cessar por acessos de tosse, falou durante duas horas, prevenindo os seus ouvintes contra as más inclinações. A seguir, elevando-se aos grandes princípios, comentou apaixonadamente o Evangelho.

Foi esse o seu último ato público, e o esforço exigido deixou-o esgotado. No dia seguinte, sobreveio nova expectoração sanguínea. Não abandonou mais o leito e falava com dificuldade, exceto para murmurar as suas orações. Ouviam-no dizer várias vezes: "Senhor, tu me esmagas, mas para mim é suficiente que seja pela tua mão". Ninguém o viu entregar a alma ao Criador, calmamente, em 27 de maio de 1564, por volta das oito da noite. De acordo com a vontade que manifestara no testamento, envolveram-lhe o corpo num grosseiro pano cru e depositaram-no num caixão de pinho semelhante àqueles com que se enterravam os pobres. Sem discurso e sem cantos, foi conduzido por uma imensa multidão ao cemitério de Plainpalais. Não se erigiu nenhum monumento sobre o túmulo, nem mesmo uma cruz ou a menor pedra. Assim desejara ele regressar ao pó, no anonimato e no silêncio. E ninguém pode hoje indicar com certeza o lugar onde jaz João Calvino.

Poucos homens, no entanto, deixaram sobre a terra um rastro tão profundo. Quem poderá negar a sua grandeza? Semeou grandes idéias, realizou grandes coisas e determinou grandes acontecimentos. A história não teria sido tal como foi se ele não tivesse vivido, pensado e agido com a sua vontade implacável. Perto de cinqüenta milhões de cristãos seguem hoje os seus ensinamentos, dos quais quarenta e um entre os reformados e os presbiterianos, e cinco entre os congregacionalistas. Talvez não haja nenhum setor do protestantismo onde não se possa encontrar alguma moeda do seu tesouro. Mas reconheceria ele como seus herdeiros aqueles que fazem profissão de prolongar a sua mensagem e que, no entanto, na sua quase totalidade, abandonaram a tese a que ele se apegava mais do que à vida - a predestinação - e muitas vezes deixaram deslizar a sua mensagem de fogo para uma espécie de sentimentalismo igualitário e moralizador? Essa é uma outra questão. Não resta qualquer dúvida, porém, de que a sua influência foi determinante, até no desenvolvimento do capitalismo, da democracia e do socialismo. [...] Calvino pertence incontestavelmente ao pequeníssimo grupo de mestres que, no decorrer dos séculos, moldaram com as suas mãos o destino do mundo.

Não é fácil julgar um homem de tal calibre; só o pode fazer Aquele que "sonda os rins e os corações". Por isso, as opiniões a seu respeito têm sido sempre contraditórias; Michelet exaltava sem medida a sua obra libertadora"; Renan via nele um banal ambicioso obstinado. Podemos fazer coro com os seus partidários e admirar o seu gênio, a sua acuidade na apreensão dos grandes problemas e o seu poder de síntese e organização. Podemos mesmo admitir essa espécie de sedução fria que, como todos os grandes espíritos, exerce sobre os que gostam das ideias longamente perscrutadas e perfeitamente expressas. E seria cometer uma enorme injustiça não reconhecer o seu ardente zelo por Deus, a sua paixão por conquistar almas, a seriedade trágica com que sempre encarou a sua vocação e o seu indefectível sentido do dever. Mas como podemos deixar de notar que faltaram a essa personalidade excepcional as duas virtudes essencialmente cristãs que deveria tê-la modelado? A humildade verdadeira, não só perante Deus, mas também perante os homens, essa humildade que um dia haveria de levar São Vicente de Paulo a lançar-se de joelhos aos pés de um transeunte que acabara de esbofeteá-lo; e a bondade verdadeira, que sabe amar os homens apesar da sua abjeção, por causa da sua abjeção, e que toda a falta sempre encontra propensa à misericórdia. Perfeito leitor do Evangelho, Calvino teria compreendido os seus dois mais belos preceitos? Que é preciso ser o último na extremidade da mesa e que é necessário amar os inimigos? [...]

As opiniões divergem também quanto ao seu papel histórico. "Calvino é o primeiro destruidor do protestantismo autêntico", diz um. "O calvinismo salvou o protestantismo", diz outro. As duas opiniões são simultaneamente verdadeiras. É verdade que Calvino empurrou o protestantismo para longe das suas bases e para fins que Lutero não desejara. Mas os rumos que o monge de Wittenberg queria tomar não desembocariam nos impasses da anarquia ou da submissão aos Estados? O protestantismo ficou a dever a Calvino a sua ordem, a sua fé comum, os seus quadros, os seus métodos, e também esse ar grave e respeitável, mais do que amável, que se lhe reconhece. Deveu-lhe um novo tipo de homem religioso.

Mas Calvino foi sobretudo o homem da ruptura decisiva, e é neste ponto, mais do que em qualquer outro, que um católico não pode deixar de sentir horror por ele. Muito mais do que Lutero, empenhou-se com uma espécie de rigor luciferino em levantar uma muralha intransponível, ou um abismo, entre a Igreja que lhe dera o batismo e aquela que ele queria "erigir". Que o seu papel, dialeticamente, tenha podido ser afinal de contas favorável aos desígnios da Providência - como o do seu predecessor -, e que o terrível raio com que ele feriu a cristandade tenha acabado por provocar nela o grande despertar, é uma verdade incontestável, mas nem por isso desculpa a sua falta. Depois dele, toda a esperança de recosturar os pedaços da Túnica inconsútil, tão horrivelmente dilacerada, se desfez durante séculos. Tal é, em última análise, o significado que se desprende desta vida humana e desta mensagem; tal foi o êxito de João Calvino.


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Sobre o autor: Daniel-Rops, da Academia Francesa, autor católico-romano, escritor de História da Igreja em 10 Volumes. O excerto encontra-se no Volume IV, "A História da Renascença e da Reforma (1)", ps. 419-422, Ed. Quadrante - 1996.